Este post dá
início a uma sequência de outros que procurará analisar o documento da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, assinado por
Mangabeira Unger, mostrando como se dará a implementação da Pátria Educadora.
Trata-se de versão preliminar.
O documento
tem duas partes. A primeira parte esboça o ideário que inspira a Pátria
Educadora. A segunda indica as ações de implementação.
Trata-se de
um documento que reúne ações de responsabilização, meritocracia e privatização
– concepções que são a base da política dos reformadores empresariais da
educação.
Dada a
urgência de que a área da educação se organize para enfrentar mais esta onda,divulgo-o aqui [ver
em anexo] para quem ainda não o tem e para que o leitor tire suas próprias
conclusões.
O texto em
elaboração pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República
do Governo Dilma é uma proposta de política educacional para a educação
brasileira feito com a liderança de Roberto Mangabeira Unger, portanto, na
ótica de quem viveu nos Estados Unidos nas últimas décadas.
Recentemente,
foi chamado por Dilma para a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Cabe a ele
configurar o programa Pátria Educadora. O vício de partida que apresenta já
evidencia suas limitações, ou seja, um documento produzido fora do Ministério
da Educação que nasce de costas para a pesquisa educacional
disponível. Sem contar que a Secretaria de Assuntos Estratégicos tem sido,
nestes últimos cinco anos, a porta voz da política dos reformadores
empresariais da educação.
Como
documento que pretende informar políticas públicas, ele é absolutamente
insuficiente e ausente de resultados oriundos de pesquisa e que possam lastrear
as recomendações que são feitas por ele. É um documento de advocacia de ideias.
Mesmo quando faz referência às “pesquisas que provam” este ou aquele aspecto
que defende, não revela de quais pesquisas está falando. Aliás, o documento
sequer tem uma bibliografia de referência que pudesse ser analisada. As
Conferências Nacionais de Educação (CONAE) produzidas após amplo debate
nacional promovido pelo próprio governo, não servem, são sonoramente
ignoradas. Nem mesmo o Plano Nacional de Educação tem lugar de destaque no
documento. A iluminada SAE apertou o botão “reset” ou “del” na política
educacional brasileira produzida até agora. Tudo começa com Mangabeira Unger e
sua equipe.
Eis aí, um
aspecto imperdoável em um acadêmico que iniciou sua vida sendo um dos mais
jovens professores de Harvard, habituado portanto às exigências da vida
acadêmica e que, ao fazer uma proposta de política pública, não poderia ter
deixado isso de lado.
Se não
queria dar ao documento um tom academicista, poderia ter feito, em documento
separado, as indicações bibliográficas. Política pública sem evidência é algo
que não deveria ter mais lugar no mundo contemporâneo. É assim que seu ex-aluno
Barack Obama faz. O Departamento de Educação americano quando prepara política
pública, produz dois documentos: um de corte acadêmico com a evidência empírica
da pesquisa que embasa a proposta e outro mais sintético onde elas são
excluídas. Isso permite que vejamos quais são as bases que estão dando
fundamento para as propostas e, ao mesmo tempo, permite que se possa verificar
o que foi deixado de lado, no âmbito da pesquisa científica. Por que o
documento em questão oculta seus vínculos acadêmicos?
As páginas
iniciais do documento são destinadas a um apressado “balanço” da educação
brasileira. Nas palavras do autor:
“Nossa
situação é dramática. Não há outro país entre as maiores economias do mundo que
figura, como figura o Brasil, entre os países com pior desempenho nas
comparações internacionais.”
O caráter
elitista da proposta é assumido logo de início:
“Não há na
história do Brasil ou do mundo um único exemplo de grande mudança em educação
que não tenha sido liderada por um grupo coeso e vanguardista, com posição
dentro do Estado ou influência forte sobre as políticas públicas. Em cada caso
de transformação, tal grupo formou ideário que definiu trajetória. Traduziu o
ideário em iniciativas que representaram os primeiros passos de caminho ambicioso.
E construiu, com base no ideário e nas iniciativas, mística nacional capaz de
despertar adesão e arrebatamento.”
Em outra
parte do documento o autor deixa claro que está “à procura da vanguarda
pedagógica”.
“De todos os
obstáculos a enfrentar para dar prosseguimento a agenda como esta, que propõe
transformação profunda no ensino básico, com consequências também para o ensino
superior, o mais grave é a falta, entre nós, de vanguarda pedagógica.” (…)
Professores e diretores da rede pública e militantes da sociedade civil,
teóricos da educação e reformadores práticos podem juntos compor esta linha de
frente, capaz de convergir em torno de agenda.” E conclui: “A vanguarda
pedagógica precisa ser a principal portadora dente projeto. Ela ainda nos
falta.”
Redigido em
tom ufanista, tem a expectativa de que todos se unam em torno do iluminado
grupo do Prof. Mangabeira. A luz está dada, faltariam só os “portadores”
da luz. Não terá dificuldade o governo Dilma em conseguir rapidamente a adesão
do Movimento Todos pela Educação para sua “vanguarda”. De fato, o que se quer é
encontrar uma vanguarda que seja portadora de ideias centrais idênticas às que
já estão prontas e que se una com o objetivo de contribuir apenas a
implementação da “agenda”.
Mas
retornando ainda ao balanço inicial que o documento faz, ele prossegue:
“Não há
exemplo de qualificação do ensino que tenha dado certo apenas pelo caminho de
ações pontuais, por mais meritórias que fossem.”
A primeira
constatação a fazer é que Mangabeira, como estrangeiro que é em terras
brasileiras, desconhece que o governo ao qual se incorporou está no poder há
exatos 12 anos e que todas estas críticas se aplicam em primeiro lugar ao
próprio ciclo de políticas públicas implantado a partir de 2003, com Lula. O
que era o Plano de Desenvolvimento da Educação de Haddad, um ministro que este
no governo por oito anos? Um mero agrupamento de programas pontuais. Nunca se
fez política educacional. E na época do PDE, a crítica foi feita.
O segundo
aspecto é que sem mencionar, Mangabeira assume o PISA da OCDE (um grupo
empresarial) como base de julgamento e avaliação da educação brasileira. Há
controvérsias se tal exame pode se constituir em um porto seguro para a elaboração
de políticas públicas (...).
O terceiro
aspecto a observar é que o documento repete o velho esquema de Freedman: diz
este autor que as mudanças têm que partir de uma crise, não importa se ela é
real ou não. Em um livro de 1995, Berliner, D. C. and Biddle, B. J., mostram como se forjou a crise
educacional americana com o objetivo de caracterizar a necessidade imperiosa de
uma reforma educacional na educação daquele pais.
Usando dados
do PISA, esquecendo-se que o governo que ele representa esteve mais de uma
década no poder conduzindo a política, Mangabeira abre o documento com a
bombástica frase: “nossa situação é dramática”. E continua:
“Oito
estados brasileiros têm, pelos critérios utilizados nestas comparações,
resultados piores do que o último país nos rankings. No final do terceiro ano
do ensino médio, mais da metade dos alunos mal consegue ler ou escrever texto
simplório. E só pequena porcentagem alcança em matemática nível considerado
internacionalmente aceitável.”
Eis a crise.
Assim também foi feito nos Estados Unidos com o relatório “A Nation at Risk” em 1983 o qual abriu a fase dos
reformadores empresariais americanos que até hoje perdura naquele país com
resultados catastróficos – diga-se de passagem, aplicando as mesmas ideias que
agora ele sugere para debelar a crise educacional brasileira e “consertar” (sic)
as escolas. (...). A vanguarda que Mangabeira procura está mais para uma
retaguarda. Nada é dito sobre ser o Brasil um dos países em que o desempenho em
matemática mais cresceu na última década, segundo o próprio PISA.
Com um
diagnóstico pífio, uma visão elitista da produção e condução da política,
sugerindo uma crise educacional sem precedentes (no limite, produzida pelo
próprio governo que ele representa), o documento passa para um diagnóstico do
desenvolvimento econômico brasileiro e suas relações com a educação – em mais
meia página.
Para
Mangabeira, entramos agora no “produtivismo includente”:
“Temos agora
de fazer a travessia para outra estratégia de desenvolvimento: o produtivismo
includente pautado por democratização de oportunidades econômicas e
educacionais. Trata-se de democratizar a economia do lado da oferta, não
apenas, como foi até agora, do lado da demanda. (…) É neste quadro que se
insere a qualificação do ensino básico: ela é a parte mais importante deste
novo modelo de desenvolvimento – produtivista, capacitador e democratizante”.
Como vai
ficar mais claro em parte mais avançada do documento, do que se trata é de
articular o sistema nacional de educação às necessidades do campo empresarial
“produtivista”.
Feitas estas
considerações, em tom arrogante e que não
comporta dúvidas (e que ao todo ocupam apenas duas páginas), ou
seja, depois de em duas páginas passar o cenário da educação brasileira e da
economia nacional em revista, sem citar um único estudo de base e de costas para
as CONAES, ele tratará em seguida do que chama de “pontos de partida”.
Nesta parte
examinaremos o item Pontos de Partida. Um extraterrestre que lesse o documento
da SAE – Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República –
poderia até concluir que ele se propõe rever o caminho das reformas
empresariais da educação.
O
primeiro ponto de partida do documento diz:
“Aproveitar
e ultrapassar o exemplo do que deu certo. Nos últimos anos o Brasil viu grande
número de experimentos na tentativa de melhorar os resultados do ensino
público. Muitos destes experimentos seguiam a lógica da eficiência empresarial…
(…) Tais práticas surtiram efeitos positivos inegáveis. Devem ser incorporadas
ao projeto de qualificação do ensino público.”
Note-se que
o ponto de partida é “ultrapassar”, ou seja, aproveitar e ir além do “que
deu certo”. E o que deu certo? A reforma empresarial, já que é a única
apresentada pela SAE e, portanto, considerada por esta como tendo dado certo,
ainda que precise, segundo ela, ser aprimorada. O critério de dar certo é
simples: ir bem no teste. É tão natural para o pragmatismo dos redatores que
assim seja, que o documento nem se preocupa em esclarecer isso.
Pergunta-se,
é nisso que se resume a experiência de qualificação do ensino público no Brasil
nas últimas décadas? Segundo quem? Segundo quais estudos? Quem fez um
levantamento disto com validade? A mera opinião dos autores é posta como
fiadora da conclusão. Não se sabe de onde isso foi tirado. Ou melhor, sabe-se:
de um pragmatismo experimentalista que é a marca do documento e poder-se ia
agregar, romântico.
As
Conferências Brasileiras de Educação, amplamente debatidas ao longo de anos,
com relatórios disponíveis, não são ponto de partida. São as reformas
empresariais que deram certo é que são validadas e consideradas como ponto de
partida. A pesquisa acumulada nas Universidades e Institutos, não é referência.
São as reformas empresariais. O “experimentalismo” destas reformas encanta
Mangabeira.
Segundo, na
mesma linha, quem disse que tais reformas “surtiram efeitos positivos
inegáveis”. A SAE? Em qualquer ciência séria, as afirmações têm que ser
documentadas e as teses demonstradas. Onde estão os dados da SAE? Basta o
iluminado grupo do Dr. Mangabeira afirmar e assume-se que seja a “verdade”?
Pouco provável. O mais provável é que estejamos diante de um sentido
utilitário bem ao estilo do novo pragmatismo americano, sob o título de “experimentalismo”.
Experimentou, deu certo, valeu.
Ou seja, o
ponto de partida já está comprometido: a única experiência digna de ser
mencionada como ponto de partida da reforma proposta é a dos empresários. Eles
experimentaram e deu certo. Daí que este seja o ponto de partida. Com qual
critério de julgamento, não sabemos e não é importante, diria Mangabeira. Mas
temos todos que continuar experimentando.
Esta visão
esquece que a política pública educacional mexe com a vida das pessoas: alunos,
professores, gestores, pais etc. A política pública não é lugar para
“experimentalismo”. Os experimentos são feitos antes e fora da política
pública e como forma de subsidiar posteriores políticas públicas avalizadas
pelos resultados. A menos que não acreditemos em possibilidades de se acumular
evidências a favor de ideias, numa visão pragmatista.
Mas não nos
enganemos, a crítica inicial feita aos reformadores é apenas uma forma de
justificar seu aprofundamento, uma reforma empresarial 2.0, em nova versão
aprimorada. Diz:
“Tais
práticas [dos empresários] devem ser incorporadas…”. Estão, porém, longe de
compor o conjunto do projeto de que precisamos: são mais eficazes nos degraus
inferiores do ensino básico do que nos superiores; têm eficácia decrescente,
uma vez alcançado o patamar que possibilitam alcançar; deixam intocado o
paradigma curricular e pedagógico e não sustentam o movimento de que precisamos
para enfrentar interesses e preconceitos contrariados. Temos muito a aprender
com a orientação empresarial. Precisamos, contudo, de muito mais do que ela é
capaz de oferecer”.
Ao longo do
documento vamos ver que ele parte de uma insuficiência da reforma empresarial
da educação, mas não para rejeitá-la, mas por querer avançar incorporando-a e
além disso desenvolvendo uma nova versão dela, uma geração 2.0, que supere seus
problemas atuais.
O ponto de
partida é obviamente equivocado, pois parte da ideia de que o arcabouço da
reforma empresarial é adequado precisando somente superá-lo por incorporação
elevando-o a um novo patamar. Ou seja, oculta que toda a concepção de
responsabilização, meritocracia e privatização – conceitos que são fundamentais
na proposta dos reformadores – estão preservados – como se verá no restante do
documento – e esquece que são exatamente tais conceitos (que permanecem
intactos na proposta da SAE), os responsáveis por aqueles limites de tais
políticas. Mais ainda, são exatamente estes conceitos que impedem a sua própria
superação. Não há portanto possibilidade de superá-los sem negar os conceitos centrais
mencionados. À sua superação os Estados Unidos dedicaram os últimos 30 anos (de
experimentalismo) sem nada avançar que não fosse cosmético. A evidência pode
ser encontrada neste mesmo blog na sua página sobre “bibliografia” e “links e
relatórios”. Permito-me não citá-los novamente aqui, bastando o leitor ir para
estes locais mencionados.
A manobra é
típica dos reformadores. Quando uma proposta se esgota, falam de uma nova
“geração”, uma versão 2.0. A ela se seguirá uma 3.0, uma 4.0 etc. pois são seus
conceitos básicos que não funcionam e não as formas que ela assume em cada uma
destas versões, os quais cumprem somente o papel de prolongar a vida de um
enfoque educacional, epistemológico e político equivocado para a
educação. O pragmatismo experimentalista romântico de Mangabeira será uma
benção para os reformadores empresariais.
Este é o
principal furo do documento (mais adiante mostraremos outros) e que o condena
como uma proposta de política pública. A crítica no documento
apenas criar as condições para a aceitação das suas teses centrais.
Negando-se, elas são reafirmadas ao longo do documento como se verá.
O segundo
ponto de partida diz: Mudar a maneira de ensinar e de aprender.
“Nosso
ensino é tradicionalmente pautado por enciclopedismo raso e informativo.” (…) ”
A interpretação de textos exemplifica o problema.” (…) “Precisamos de ensino
que use o aprofundamento seletivo” (leia-se, ensino diferenciado para os alunos
mais lentos e para os mais avançados) “como palco para a aquisição de
capacitações analíticas, direcionadas às habilidades centrais de análise verbal
e de raciocínio lógico. e que permita à massa de alunos, vindos do meio pobre,
superar as barreiras pré-cognitivas” (leia-se socioemocionais) “que os impedem
de acender às capacidades analíticas. Será obra de libertação.”
Bem na
lógica dos reformadores. Ênfase em português e matemática. Onde estão as artes
e o desenvolvimento corporal? Sequer são lembrados. Não cabem no novo
racionalismo empresarial. O estreitamento curricular está colocado como ponto
de partida da proposta. Nada de grandes ensinamentos, nada de “formação
humana”. Do enciclopedismo raso, direto ao pragmatismo raso. Sempre lembrando
que os pobres não aprendem porque têm barreiras socioemocionais que precisam
ser removidas pela escola.
Os novos
reformadores são os novos libertadores das classes populares. O discurso é o
mesmo nos Estados Unidos como já mostramos em inúmeros posts. Mais adiante
veremos que para isso se propõe disciplinar (sic) as camadas populares na
escola, via remoção das barreiras sociomocionais impeditivas da aprendizagem
(sic).
A
libertação, na realidade é a colocação de novos grilhões pela via do
disciplinamento, pela via da “autorização” para que os pobres, cumpridas certas
exigências, sejam autorizados a cruzar a fronteira da inclusão em direção ao
mercado de trabalho como produtores de bens e serviços disciplinados, atentos,
prestativos e com algum raciocínio lógico e capacidade de escrita que
permita-lhes integrar-se às novas exigências dos novos processos de trabalho
empresariais. É o “produtivismo includente”, a era das oportunidades. Uma
libertação que produz “modernos escravos” bem ao sabor das reformas
empresariais da educação do tipo “no excuses” presentes na direita americana.
Finalmente o
terceiro ponto de partida diz: Organizar a diversidade para permitir a
evolução. Esquecendo-se que faz parte de um governo que começou doze anos
antes, Mangabeira e seu grupo considera que:
“A educação
pública no Brasil tem sido simultaneamente desorganizada e uniforme: uniforme
no conformismo com a mediocridade. (…) “Nosso objetivo deve ser o de
substituir uniformidade desorganizada pela diversidade organizada.”
Mesmo quando
aceita “nosso federalismo e (…) nossas diferenças”, o faz para lembrar logo em
seguida que obstar a diversidade impediria “espaço para o
experimentalismo”. Ou seja, para um pragmatismo daquilo que deu certo. Veremos
depois, como a União se ergue perante os Estados em uma nova proposta
federalista cooperativa, induzindo, com sacos de dinheiro, uma política
experimentalista, regada à política dos reformadores empresariais. A isso,
certamente, se chama “organizar a diversidade”.
Que lástima
de simplificação. Quanto oportunismo na definição de diversidade. Lidar com a
diversidade se resume em organizar a bagunça. E pontifica: “Sem
organização não há como aprender com a experiência. Não há como evoluir.” Eis
aí a pérola pragmatista emergindo. A política pública, devemos enfatizar,
não é local para improvisar experimentalismos.
O novo
racionalismo empresarial, o novo pragmatismo americano, incluindo as
experiências das reformas empresariais estão na base da proposta.
Neste post
examinamos o primeiro item do chamado “Eixo da qualificação do ensino público”.
O conjunto dos eixos propostos inclui: a organização da cooperação federativa
na educação; a reorientação do currículo e da maneira de ensinar e aprender; a
qualificação de diretores e de professores; e o aproveitamento das novas
tecnologias.
Construir o
federalismo cooperativo no ensino básico é o primeiro eixo. A seção começa
saudosa do SUS: “Nunca vivemos na educação movimento como aquele que culminou
no SUS.” O objetivo da cooperação é claro:
“Maneira
simples de colocar a problemática do federalismo cooperativo na educação é
dizer que se destina a reconciliar a gestão das escolas pelos estados e
municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade.”
A proposta é
organizar – tendo como horizonte os “padrões”-, o “federalismo cooperativo em
educação”. Guardemos bem este objetivo, pois ele já aponta para mecanismos de
indução fortes que serão, no decorrer do documento, elencados. Que instrumentos
precisa o federalismo cooperativo?
“Para
reconciliar a gestão local com padrões nacionais, precisamos de três
instrumentos: sistema nacional de avaliação e de acompanhamento; mecanismo de
redistribuir recursos e quadros de lugares mais ricos para lugares mais pobres,
e procedimentos corretivos para consertar redes escolares locais defeituosas” .
Eis o
objetivo final: “consertar redes escolares locais defeituosas”. Como se faz em
uma empresa qualquer. Ajustam-se os reloginhos de controle, controla-se insumos
e tomam-se medidas de correção, em função dos padrões esperados, mediante
avaliação. A filosofia é a mesma do No Child Left Behind americano. E até o
verbo usado é o mesmo de lá – “to fix”, ou seja, consertar.
Certamente
os estudiosos que estão envolvidos com a elaboração do sistema nacional de
colaboração entre entes federados terão aqui matéria abundante para análise.
Este é um dos temas exaustivamente tratados na área da Educação e nas CONAES. É
assustadora a superficialidade do tratamento dado a matéria tão complexa.
Em seguida,
o documento desdobra este eixo em três pontos.
No que tange
à avaliação, Mangabeira considera que “estamos na vanguarda do mundo”. No
entanto recomenda dois aperfeiçoamentos:
Primeiro
aperfeiçoamento é usar a Prova Brasil para montar um Cadastro Nacional de
Alunos, com o objetivo de facilitar a individualização do ensino. Vale dizer:
para que se possam tomar medidas de apoio aos alunos com baixo desempenho e
também em relação aos alunos de maior desempenho, admitindo estes últimos em
programas e escolas de referência. Mais adiante o documento dirá que estes
alunos “concorrerão” para serem admitidos nas escolas de referência chamadas
“Escolas Anísio Teixeira”, destinados a alunos brilhantes.
São os “big data” que estão em construção dentro dos Estados Unidos, produzindo
muito debate sobre a confidencialidade e privacidade dos dados dos
estudantes. Imaginem uma base de dados que diz quais estudantes são brilhantes
no Brasil. Bill Gates tentou financiar um grande projeto, mas ante as
dificuldades de convencer os Estados, acabou recuando. Mas o projeto continua
por meio de outras empresas e iniciativas.
O segundo
aperfeiçoamento só é crível, se eu o citar literalmente:
“A segunda
iniciativa é o desempenho pelo INEP, ou de
entidade alternativa (grifos meus LCF), da função de
identificar os experimentos mais exitosos no Sistema Público de Ensino e de
disseminá-los. Crucial para regime aberto ao experimentalismo é que tenha
como reagir ao êxito diferencial dos experimentos (grifos
meus LCF), propagando o que melhor funcionar em vez de ficar sujeito à força
inercial das práticas herdadas.”
Eis aí o
experimentalismo pragmatista como prática de formulação de política pública,
acoplado às teses dos reformadores empresariais do incentivo diferencial ao
desempenho das redes e professores, na dependência de resultados de testes.
Nada contra
identificar o que melhor funciona e ensina nas redes, a partir da valorização
da prática dos nossos professores. O método é que é inadequado. A questão é a
associação dos êxitos com a “reação diferencial aos êxitos” (ou seja, subsídio
federal – veja logo a seguir) a partir de critérios que se baseiam em
resultados de testes padronizados. O que assusta é este pragmatismo raso. E
note que o sistema atual de avaliação do INEP é considerado “vanguarda do
mundo” e portanto, não precisa, em si, sofrer modificações. Resta saber se
alguém considera o IDEB vanguarda do mundo. Penso que nem seus formuladores
concordariam com isso. Sem falar de uma série de micro indicadores em Estados e
Municípios os quais não possuem nenhuma validação formal, ou são tão precários
quanto.
No segundo
ponto trata-se dos mecanismos redistribuidores de recursos e quadros, em função
do êxito do experimentalismo. A curto prazo, a proposta é orientar o FNDE a
financiar mediante adesão dos estados e municípios, a maior parte dos programas
propostos aqui. Segundo o documento, os programas não são propriamente
redistribuidores, mas implicitamente “trabalham a favor da obediência a
critérios nacionais de qualidade”.
O terceiro
ponto modula os dois anteriores:
“conserto
das escolas ou redes escolares persistentemente malogradas, [onde] temos mais
trabalho a fazer e maior necessidade de mudar as leis ou até de emendar a
Constituição.”
Este é o
verdadeiro objetivo da “federação cooperativa”. A ideia é unir os três níveis
da federação em colegiados capazes de atuar juntos para “consertar” partes do
sistema público que não atinjam o patamar mínimo. Lembro aqui, que tais
patamares mínimos estão fixados no PNE e que há uma lei de responsabilidade
educacional em tramitação no Congresso. Lembro aqui, que esta é uma porta de
entrada para a privatização, pois um dos mecanismos para tal é fixar objetivos inatingíveis e a
partir daí justificar a privatização das escolas que
não atingem tais níveis, trocar diretores etc.
Diz o
documento:
“Teriam de ser, no início (grifos
meus LCF), as situações mais extremas, onde a carência mais premente vem
acompanhada da menor capacidade institucional. Se os
incentivos ao que funciona não tiverem como contrapartida o conserto do que
malogra (Grifos meus LCF), o resultado será apenas
aumentar a desigualdade dentro da federação.”
Vale a pena
ler o trecho seguinte:
“Os
diretores de escolas com desempenho insatisfatório receberiam apoio e
orientação. Em último caso, seriam afastados e substituídos. Em ambas as
situações atuariam equipes de reforço, compostos por orientadores indicados
pelo Ministério da Educação e das secretarias de educação dos estados. O
financiamento viria de recursos discriminados dentro do FNDE.”
O modelo é
portanto claro. Com padrões definidos, incentivos são dados a quem os atende e
aos que não os atende, resta a substituição no cargo. Mas isto é o início, diz
o documento. Um modelo que além de punitivo é autoritário e intervencionista na
escola. O que se propõe de fato é uma intervenção na direção da escola, como se
todos os problemas estivessem exclusivamente sendo causados por uma má
administração. Nada é dito de uma gama de outras variáveis que afetam o
rendimento das crianças e que não estão sob controle direto da escola. E elas
não têm peso pequeno. Somam 60% da explicação do rendimento dos alunos.
Mas tem
mais. Em uma segunda etapa, seria estabelecido colegiado transfederal para
cumprir a “tarefa corretiva”. Novamente o SUS: “A melhor analogia com que
contamos dentro das regras atuais são as comissões tripartites ou intergestoras
do Sistema Único de Saúde.”
No futuro,
diz o documento, seria criado um fundo específico para financiar
“ostensivamente” redistribuindo recursos – diferente do FNDE e do FUNDEB,
apoiado pelos recursos do pre-sal. “Entre as atribuições deste fundo estaria a
de financiar as ações corretivas”.
São três os
passos propostos: avaliação, redistribuição e correção. Ou seja, uma verdadeira
intervenção nos Estados (redes e escolas) em matéria de educação, sob a
batuta da União, com um saco de dinheiro do pré-sal, incentivando as “melhores
práticas” fruto do experimentalismo como prática de formulação de política
pública. Mas, claro, tudo a partir da opção dos estados. Porém, quem não optar,
não tem recursos adicionais. Uma extorsão consentida, a peso de subsídio
federal.
Os Estados
Unidos é conhecido pela tradição da independência de seus Estados frente à
União. Pois lá, por unanimidade de republicanos e democratas, a lei No Child
Left Behind foi aprovada na mesma ótica aqui proposta por Mangabeira –
ressalvadas algumas diferenças pela idade com a qual a aplicação destas ideias
estão sendo feitas naquele país. Não é bom portanto, que consideremos mero
“romantismo mangaberiano” as ideias aqui apresentadas no documento.
Não devemos
esquecer que apoiando estas ideias estará toda a máquina empresarial reunida no
Movimento Todos Pela Educação tendo como coadjuvantes centenas de Institutos
privados e ONGs que estarão aguardando um sistema deste tipo para faturar
algum, sem contar a pressão dos grandes grupos internacionais que operam no
campo da consultoria em avaliação e apoio a escolas “malogradas”. Não pensem os
ongistas brasileiros que a principal fatia de dinheiro irá para eles. Serão
engolidos por grandes corporações como a Pearson.
O ponto sob
exame neste post é a parte chamada “Mudar o paradigma curricular e pedagógico
do ensino básico”. Sempre pensando que este blog está voltado para as questões
relativas à avaliação educacional.
O trabalho
pedagógico da escola, para Mandabeira, deve:
“A primazia
deve caber sempre (Grifos
meus LCF) às capacitações analíticas: interpretação e composição de texto e raciocínio
lógico.”
Em seguida,
propõe três desdobramentos:
“… a
prioridade dada no currículo a aprofundamento seletivo; a atenção a
capacitações analíticas; e o enfrentamento das inibições pré-cognitivas
(comumente chamadas de socioemocionais) ao domínio das capacitações analíticas.
São as capacitações de comportamento, sobretudo as de disciplina e de
cooperação.”
Em primeiro
lugar, com esta formatação, o documento impulsiona o estreitamento curricular
em torno a disciplinas do tipo língua portuguesa, matemática e ciências. Temos
aqui, consequências nefastas para a formação de nossa juventude.
Falo do que
a literatura já registra sob a rubrica de “estreitamento curricular”. Ao tornar
a natureza de algumas disciplinas de forma prioritária e consequentemente como
objeto de avaliação externa, a escola passa a orientar-se pelos ganhos nestas
disciplinas e, portanto, prioriza a atuação dos professores destas disciplinas.
Em uma das redes de ensino no Estado de São Paulo, chega-se ao extremo de usar
o tempo das outras disciplinas para dar continuidade ao estudo de língua
portuguesa e matemática, sonegando ao estudante formação nestas disciplinas. A
fraude continua quando as notas das outras disciplinas sonegadas são dadas a
partir do envolvimento do aluno em língua portuguesa e matemática.
Mas não é um
fenômeno local. O leitor interessado pode consultar neste blog a tag
“estreitamento curricular” e também encontrará material na página Bibliografia.
Mas
certamente é isso mesmo que o documento quer. Conheço muitos reformadores
empresariais que defendem tal primazia, com o mesmo jargão da “libertação dos
estudantes” mais pobres pelo caminho do domínio da leitura. Para estes, se for
bem em língua portuguesa e matemática, ele irá bem nas outras também.
Todos
sabemos que no mundo empresarial, o que define hoje a permanência no mercado é
a inovação. Empresas que não inovam, sairão do mercado. Inovação supõe
habilidades ligadas à inventividade, à criatividade que não são desenvolvidas
nas crianças a partir de capacitações analíticas. E muito menos colocando em
cena uma ação junto a habilidades socioemocionais voltadas para a disciplina. A
inventividade supõe o oposto, a capacidade de quebrar a disciplina, de quebrar
o senso comum. Supõe alguma capacidade de “navegar contra a corrente” e não
adaptar-se ao existente. Aqui, curiosamente, o experimentalismo de Mangabeira
acaba para dar lugar ao disciplinamento.
Ao focar nas
capacidades analíticas que se associam aos exames em língua portuguesa,
matemática e ciências, disciplinas outras como “artes” e “desenvolvimento
corporal” são retiradas do cenário de atenção. E são exatamente tais
disciplinas que servem de contraponto, no atual formato de nossa escola – tão criticada
por Mangabeira – e podem apoiar o desenvolvimento da inventividade logo na
educação infantil e na fundamental.
Mais: o
estreitamento curricular em capacidades analíticas, conduz a uma pressão
claramente visível, em países que seguiram este caminho, sobre a educação
infantil levando esta a uma antecipação da escolarização. Ora, é exatamente na
educação infantil que a criança está em condições de ser ainda exercitada na
direção da inventividade, para a criação. A antecipação da escolarização que pode ser vista nos Estados Unidos, de onde
Mangabeira tira tais ideias, matou a função formativa da educação infantil a
tal ponto que o material didático destinado a jogos e a brincadeiras nas
escolas está desaparecendo.
Mas vejamos
os desdobramentos feitos pelo documento.
O primeiro
desdobramento é chamado de “aprofundamento seletivo”. Depois de criticar o
“enciclopedismo raso” do nosso sistema educacional, o documento propõe o que podemos
chamar de uma diversidade desestruturante e experimentalista que pode ser
resumido na seguinte frase:
“Em sistema
de ensino como o que nos propomos a construir, que organize a diversidade e que
privilegie as capacitações, de análise e de comportamento, não pode haver
conteúdos consagrados. O que vale é a profundidade. O aprofundamento seletivo é
o terreno para o domínio das capacitações analíticas. O foco temático do
aprofundamento pode e deve ser mutável ou itinerante: a capacitação se
fortalece à medida que variam seus campos de aplicação. Os projetos tomam o
lugar do enciclopedismo canônico, mesmo quando o enciclopedismo bate em
retirada rumo a conhecimentos tidos como indispensáveis.”
Mas o que
não encaixa é exatamente este experimentalismo anti-conteudista com a ênfase
nos testes de avaliação. Ou melhor, encaixa sim: uma diluição de conteúdos
associada à ênfase em testes, produz segregação de estudantes em base ao
desempenho escolar, permitindo a “escolha dos eleitos”. E isso explica o
significado do ponto que se seguirá no documento e que trataremos no próximo
post, ou seja, a igualdade de oportunidades liberal.
Este post
continua a análise do item “Mudar o paradigma curricular e pedagógico do ensino
básico”. No post anterior concluímos dizendo: “o que não encaixa é exatamente
este experimentalismo anti-conteudista com a ênfase nos testes de avaliação. Ou
melhor, encaixa sim: uma diluição de conteúdos associada à ênfase em testes,
produz segregação de estudantes em base ao desempenho escolar. E isso explica o
significado do ponto que se seguirá no documento e que trataremos no próximo
post.”
Continuemos.
O segundo desenvolvimento proposto pelo documento refere-se ao currículo como
uma sequência de capacitações: há uma sequência padrão e
há sequências especiais. Este ponto é de extrema importância, pois
ele regula exatamente o efeito combinado da diluição de conteúdo já bem
analisada por Dermeval Saviani, como veremos ao final deste post, para o
caso da escola nova, com a ênfase nos exames que conduzem exatamente a esta
diferenciação de sequências. Teremos alunos padrão e alunos especiais.
“O
currículo, porém, deve também comportar sequências especiais, para os alunos
que enfrentam maior dificuldade ou que demonstrem maior potencial. As
sequências especiais servirão como espaço ainda mais aberto do que a sequência
padrão para o experimentalismo pedagógico e para a individualização do ensino.”
Trata-se
de segregação escolar abertamente proclamada. Os alunos especiais serão ou
de “maior potencial” – para estes estão reservadas, no nível médio, as Escolas
de Referência– ou, por contraposição aos alunos padrão, ou serão de menor
potencial – para estes, usualmente a pobreza, – se tomarmos os dados
disponíveis no mundo todo sobre relação entre desempenho em testes e classe
social, – estão reservados “programas especiais dentro das escolas comuns”.
Os objetivos
da escola nova florescem, aqui, como nunca nas propostas do documento
recriando, no século XXI, as condições americanas do começo do século passado,
de forma a transformar o sistema educativo em um instrumento para separar o
joio do trigo. Aos filhos dos trabalhadores, escolas especiais em escolas
comuns de suas localidades. Aos filhos das classes melhor posicionadas (e
alguns sortudos das outras classes que consigam demonstrar que são bons
concorrendo) escolas de referencia Anísio Teixeira. Enquanto a grande massa
padrão ou especial de menor potencial permanece no fluxo das escolas comuns, as
de maior potencial são dragadas para as escolas de referência, quando ingressam
no ensino médio.
Aprofunda-se
o dualismo do sistema educacional: aos pobres o trajeto comum, e para os
remediados, ricos ou sortudos das demais classes, trajeto especial. Os alunos
estarão desde níveis anteriores orientados a uma ou a outra e nos termos
do documento: “… concorrerão para serem admitidos a estas escolas.” Note-se que
estamos falando de educação básica.
As escolas
de referência servirão tanto para “sequências curriculares mais exigentes e
funcionar como espaço privilegiado para o experimentalismo pedagógico.” Desta
forma, fica transferido para os “alunos comuns” a responsabilidade por não
terem conseguido entrar nas escolas de referência, pois não se esforçaram
adequadamente: “não quiseram ou não conseguiram”. Que estas políticas mantêm ou
aprofundam a segregação escolar é algo bem documentado no caso chileno e americano, mas que
sejam defendidas com esta clareza, surpreende pelo seu tom “agressivo”.
Mas há mais.
O apostilamento é defendido com todas as letras.
“Tanto a
sequência curricular padrão como as sequências especiais precisam ser
encarnadas em rico repertório de protocolos disponibilizados aos professores.
Os protocolos darão exemplo práticos e pormenorizados de como liderar cada aula
em cada disciplina. Substituirão o livro didático na imprópria função de servir
como guia curricular residual.”
Os impactos
de tal processo no interior das escolas e das redes são imprevisíveis e
significarão, na prática, desde salas especiais para este ou aquele grupo
de alunos até escolas inteiras especificamente destinadas a este ou aquele
grupo de alunos. Alerta: as populações com necessidades especiais serão
duramente atingidas. No documento da Pátria Educadora, portadores de
necessidades especiais não figuram.
A
consequência para os professores é a desqualificação de todo o quadro nacional
docente, que passa a ficar depende direto de protocolos, leia-se, apostilas.
Retira-se do professor exatamente aquilo que é central na sua atividade: a
construção dos “protocolos” ao vivo, na sala de aula, em função da realidade de
seu aluno. Promove a destruição do magistério e transforma a escola em uma
linha de produção previamente concebida e organizada para a produção de três
tipos de alunos: alunos especiais de menor potencial; alunos padrão; e alunos
especiais de maior potencial. O documento revela uma profunda desconfiança
naqueles que conduzem o processo educacional: nossos professores. Ao contrário
do que proclama, desqualifica o magistério.
Cabe lembrar
neste momento, que a privatização via escolas charters nos Estados Unidos
começou exatamente com a desculpa de que tais escolas iriam inovar na atenção
dos alunos que tinham maior dificuldade de aprendizagem de maneira a se
constituir em uma ajuda às outras escolas públicas. Deu no que deu:
privatização em massa por concessão.
Depois de
introduzir argumentos destinados a amenizar a visão elitista e segregacionista
da proposta, conclui:
“Todas as
democracias do mundo enfrentam, na educação, a tensão entre os ideais de universalidade
e igualdade, de um lado, e a determinação de assegurar espaço aos talentos, de
outro. A solução não está em impedir a variação do ensino e em impor a
mediocridade em nome da democracia. Está em usar os programas especiais para
subsidiar a transformação dos programas gerais.
Está também
em tomar medidas pró-ativas para identificar vocações incomuns na massa de
estudantes pobres e prepará-los para candidatar-se às escolas de
referência e às sequências curriculares especiais (Grifos meus
LCF). Só assim evitaremos, dada a desigualdade do país, que apenas a
classe média intelectualmente ambiciosa as aproveite.”
Aqui,
pode-se dizer, que a SAE do Governo Dilma, ao contrário do que pensa,
se converte em ré confessa de um elitismo sem precedentes. É de uma
ignorância assustadora em relação aos mecanismos de seleção social presentes na
nossa sociedade e seus efeitos na escola. Seus termos são claros: “massa de
estudantes pobres”, “vocações incomuns”, “sequências especiais”. A democracia
dela, é a democracia das oportunidades para os eleitos. De fato, não se poderia
esperar outra coisa: é típico do liberal não aceitar a igualdade de
resultados (nem na educação básica obrigatória) e substituí-la (insisto na
educação básica) pelo conceito de igualdade de oportunidades, competição,
concorrência.
Quando diz:
“Corolário
desta visão do currículo e da maneira de ensinar e aprender é a rejeição de
contraste rígido entre o ensino geral, voltado para a formação de elites, e o
ensino técnico, dirigido a trabalhadores”
Esta frase
deve ser interpretada dentro deste contexto liberal de igualdade de
oportunidades (para os melhores) e nunca no sentido defendido historicamente
pelos educadores de igualdade de resultados para todos.
E
finalmente, emerge a razão fundante da proposta, nas últimas linhas desta
parte:
“As
exigências da democracia e da evolução econômica caminham no mesmo sentido: o
de estabelecer fronteira aberta entre ensino geral de orientação analítica e
ensino prático que privilegia capacitações flexíveis e genéricas, como são as
demandadas pelas tecnologias contemporâneas de produção.”
E em tempos
de retomada do escolanovismo mangaberiano, não está demais retomarmos também a
crítica já feita à sua primeira onda por Saviani:
“Aplicando o
mesmo raciocínio à situação educacional, cabe observar que as críticas da
Escola Nova atingiram o método tradicional não em si mesmo mas a sua aplicação
mecânica cristalizada na rotina burocrática do funcionamento das escolas.
A
procedência das críticas decorre do fato de que uma teoria, um método, uma
proposta devem ser avaliados não em si mesmos, mas nas consequências que
produziram historicamente. Essa regra, porém, deve ser aplicada também à
própria Escola Nova.
Neste
sentido cumpre constatar que as críticas, ainda que procedentes, tiveram, como
assinalamos no texto anterior, o efeito de aprimorar a educação das elites e
esvaziar ainda mais a educação de massas. Isto porque, realizando-se em algumas
poucas escolas, exatamente aquelas frequentadas pelas elites, contribuíram para
o seu aprimoramento.
Entretanto,
ao estender sua influência em termos de ideário pedagógico às escolas da rede
oficial, que continuaram funcionamento de acordo com as condições tradicionais,
a Escola Nova contribui, pelo afrouxamento da disciplina e pela secundarização
da transmissão de conhecimentos, para desorganizar o ensino nas referidas
escolas. Daí, entre outros fatores, o rebaixamento do nível da educação
destinada às camadas populares. (Escola e Democracia, 1983)”
Penso que
isso resume de forma oportuna a situação que nos espera. Dirão que, agora, será
diferente. Que haverá nova versão 2.0. Pouco provável que a segunda onda
neo-pragmatista escolanovista seguirá curso diferente.
Ainda dentro
do tópico “Mudar o paradigma curricular e pedagógico do ensino básico” falta
examinarmos seu último item, ou seja, “capacitações pré-cognitivas”.
“Grande
parte da massa de alunos pobres no país enfrenta obstáculos que podem parecer
instransponíveis em subir a escada das capacitações analíticas. São as
inibições, às vezes chamadas socioemocionais, que barram o caminho.”
Alerta o
documento que:
“Não se deve
confundir a determinação de superar tais impedimentos com a tentativa de fazer
da escola agente de doutrinação moral. (…) Trata-se de trabalhar no terreno de
capacitações pré-cognitivas que faltam a crianças saídas da pobreza mais
comumente do que faltam aos filhos da classe média.”
Com este
alerta, o documento fica em paz e de consciência tranquila em relação ao que
possa ser feito em seu nome na escola.
Prosseguindo,
o documento estabelece dois conjuntos de capacitações socioemocionais que
merecem maior atenção: a disciplina e a cooperação.
“Disciplina
inclui o poder de concentração nas tarefas da aprendizagem e, portanto,
determinação de manter rotinas de trabalho, habilidade para hierarquizar as
tarefas em ordem de importância e de premência, disposição para organizar o
tempo e para tratar o futuro como presente, dedicação ao cumprimento dos
compromissos e energia para reprimir distrações e tentações. No fundo
existencial da disciplina está a aliança entre a ambição e a autoestima.”
(…) “Quando
a família não consegue desempenhar esse papel, porém, a escola tem que assumir
parte das tarefas da família. É a situação que se multiplica em grande escala
no Brasil: nas periferias e nos bairros pobres de nossas cidades, mais da
metade das famílias costuma ser conduzida por mãe sozinha, casada ou solteira.
Revezam-se homens como companheiros instáveis. Esta mãe, pobre e geralmente
negra ou mestiça, luta para zelar pelos filhos e para manter ao mesmo tempo
emprego ou biscate.”
Isso, com os
pobres. Mas:
“Num meio
social organizado e livre de extremos da opressão e da desigualdade, lugar para
aprender disciplina é em casa. A escola apenas completa o que a família
começou.”
Esta
reflexão é associada à ampliação do turno escolar. Para a SAE:
“Tem [a
escola] que assumir parte das tarefas da família ao criar, na escola, espaço de
estímulos e cobranças (Grifos
meus LCF) em turno social ampliado. Esta é uma das principais razões para
estender o turno escolar.”
Quanto à
cooperação, o documento entende que:
“As práticas
cooperativas representam porta para as formas superiores de aprendizagem e de
produção. É o método do trabalho científico tanto quanto é, cada vez
mais, a base de qualquer atividade produtiva densa em
conhecimento (Grifos meus LCF). As formas mais
avançadas da produção são aquelas que pedem ao trabalhador fazer tudo aquilo
que ainda não aprendemos a repetir e que portanto não podemos delegar a
máquinas. (…) Ensino analítico e capacitador só pode ser ensino cooperativo,
organizado em forma de equipes e redes, de alunos e de professores.”
Esta
vertente das políticas dos reformadores empresariais nunca aparece descolada da
questão da disciplina e sem estar associada a um certo moralismo.
Recentemente, comentei este aspecto. Nos Estados Unidos a situação é mais clara
com a instalação de um movimento chamado “no excuses” – “sem desculpas” ou
ainda “tolerância zero”. Nas palavras de Diane Ravitch:
“… a origem
do “No Excuses” pode ser atribuída a um livro do mesmo nome por Samuel Casey
Carter, escrito em 2000, acerca de “21 escolas de alto desempenho e alta
pobreza” e divulgado pela Heritage Foundation de extrema-direita. A ideia por trás
do livro é que nós não precisamos gastar mais dinheiro para consertar as
escolas, temos apenas que nos certificar de que as escolas sejam exigentes em
sua disciplina e sem nenhum absurdo pedagógico.”
Associada a
esta concepção está a teoria da disciplina chamada “broken Windows”. Foi
introduzida pelos cientistas sociais James Q. Wilson and George L.
Kelling, em um artigo chamado “Broken Windows” que apareceu em março de 1982 no
The Atlantic Monthly. Eles faziam um paralelo com um edifício que, se
ficasse com algumas poucas janelas quebradas, terminaria por estimular a que
mais janelas fossem quebradas.
Isso
aplicado à educação, gera uma mensagem bem clara para os estudantes e pais:
tolerância zero com a indisciplina e com afazeres de casa. Leia-se: mais autoritarismo
na escola e mais segregação. Além disso, o conservadorismo destas ideias
tem enorme repercussão para a sala de aula, contribuindo para colocar a criança
e os pais de joelhos perante a escola e o professor. Não há ensino
“cooperativo” que controle tais consequências.
Quando esta
questão das habilidades socioemocionais apareceu, foi impulsionada por uma ação
da própria SAE que realizou um seminário incluindo fornecedoras de testes
destas habilidades. Uma delas realiza no Rio tradução e prepara versão
brasileira destes testes. A ideia de se utilizar testes de avaliação na
educação infantil foi criticada também pela ANPED já
naquela época. (...) É verdade que o documento da SAE não recomenda o uso
dos testes socioemocionais formalmente, mas será o caminho natural.
Não estamos
discordando de que a escola possa e até deva se envolver com habilidades
socioemocionais. Mas novamente, o conjunto das medidas, a forma como ela
aparece dentro de um contexto de cobrança das redes, das escolas e das famílias
facilitará o desenvolvimento de processos de controle baseados em avaliações de
larga escala, uso de testes e pressões sobre os professores, pais e as
crianças. A ambição da proposta é grande: além de querer “consertar as escolas”
ela pretende também “consertar as crianças” mais pobres. Constituir-se-á em
instrumento de aumento da discriminação e segregação.
Isso
conduzirá as escolas a implementar um conservadorismo moral sobre professores e
alunos, bem ao sabor dos tempos que estamos vivendo (redução de maioridade
penal, liberação de compra de armas, terceirização de atividades fins etc.). E
não vai se combater isso escrevendo nos documentos que não queremos que seja
assim, porque todas estas ações estarão associadas a financiamento, a acesso a
recursos, e é esta relação que instalará nas escolas os processos destinados a
não perdê-lo, não importa por quais meios. A lei de Campbell agirá:
“Quanto mais
qualquer indicador social quantitativo é utilizado para a tomada de decisões
sociais, mais sujeito estará às pressões de corrupção e mais apto estará a
distorcer e corromper os processos sociais que se pretende monitorar... quando
os resultados dos testes se tornam o objetivo do processo de ensino, ambos
perdem o seu valor como indicadores de status educacional e distorcem o
processo educacional de maneira indesejável.”
Chegamos ao
item que trata dos Diretores e dos Professores. Aqui vai se revelar claramente
o vínculo direto da proposta com as políticas de bonificação salarial, base da
reforma empresarial da educação, cujos efeitos além de deletérios são
praticamente nulos para a melhoria da escola, conforme registrado amplamente na literatura. O leitor
encontra mais material neste mesmo blog em especial sobre as experiências de bonificação de New York e no
próprio Estado de São Paulo.
Nesta parte
também revela-se que a crítica feita ao início pelo documento da SAE aos
reformadores empresariais é apenas uma forma de incorporar suas teses para
complementá-las, para ir além, mas sempre com as mesmas bases pragmatistas,
escolanovistas, experimentalistas e de certa forma românticas dado o
descolamento das propostas em relação à realidade das escolas e suas
possibilidades.
O texto
inicia com a constatação de que:
“Exemplo de
ineficácia de soluções singelas e isoladas é a insuficiência de aumento da
remuneração de professores. (…) Há abundante evidência empírica para demonstrar
que aumentar, ainda que substancialmente, o salário do professor não resulta,
por si só, em melhora do ensino, ainda que, junto com muitas outras medidas,
possa tornar a carreira (quando ela exista) mais atraente.”
O argumento
é dúbio. Não ajuda, mas ajuda. Não ajuda a resolver, mas ajuda a tornar
atrativa a carreira. Aqui, o texto apenas tem a função de preparar o leitor
para a aceitação da política de bonificação como forma de diferenciar salários
e tornar a profissão mais atrativa para quem se esforça. Como sempre acontece,
a “abundante evidência empírica” existente segundo o documento, não é
apresentada.
Mas é fato
que somente salário não melhora, automaticamente, o ensino. A razão é que o
fenômeno educativo é multivariado e portanto depende de que se alterem
simultaneamente os valores de múltiplas variáveis. Mas isso não descarta o
salário digno, é bom que se reafirme. E salário digno deve ser a base de uma
profissão, independentemente dele resolver ou não os problemas de ensino que
temos e que sabemos dependem, também, em até 60%, de variáveis que não estão
sob controle da própria escola. Insistindo, o salário tem que ser digno
e tendo resolvido este limitador, simultaneamente temos que mexer em
outros fatores.
Portanto, à
luz da grande evidência empírica igualmente disponível mostrando os limites da
bonificação, a política de bônus não é recomendável. Sem salário digno, que não
se limita a um piso ínfimo de R$ 1.500,00 – cerca de US$ 500 dólares – não se
coloca a questão de se aumento salarial é ou é não uma solução para o ensino.
Ele nem chega a ser digno e só por isso, necessita ser aumentado. Aqui
ignoram-se os dados da OCDE sobre o que se paga no mundo para professores em
países com educação bem sucedida. A evidência empírica, quando convém, não é
alegada.
Mas
prossegue a SAE em seu “diagnóstico” pragmatista dizendo que os diretores “são
nomeados por apadrinhamento político ou eleitos em processos que favorecem a
irresponsabilidade e a indiferença ao mérito.” Eis a questão que incomoda os
liberais: o mérito. Invocar o mérito é apenas preâmbulo para a proposta da
bonificação. Por esta via, com um salário miserável, propõe-se aos
profissionais da educação intensificar seu trabalho e com o mérito acumulado,
ganhar um bônus.
Chega a vez
das instituições formadoras. Para o documento, estas instituições:
“… estão
longe de oferecer ensino compatível com rumo como o que aqui se propõe.
Deixam-se fascinar, ao gosto de cada catedrático, com o torneio de manual entre
filosofias da educação. Costumam, entretanto, prover ao menos alguns elementos
de formação aceitável.”
Esse
diagnóstico é válido apenas para as instituições federais. No caso das
particulares: “… muitas [são] de seriedade duvidosa, dedicadas ao lucro e
carentes de recursos intelectuais.” Complemente-se que são credenciadas para
funcionamento pelo próprio MEC e SESU. Mangabeira fala como se fosse um ente
extraterrestre que não participa de um governo que está há doze anos no poder.
“Não se trata de demonizar o professorado, que é também produto e vítima de uma
história de descalabro” – arremata.
Para o
documento da SAE, “tudo pode começar a mudar numa escola com bom diretor”.
Note, tudo. O grande problema é o diretor. Ideia compartilhada por muitos
reformadores empresariais que conheço, que tratam a escola como uma pequena
empresa. A receita pode ser facilmente dedutível:
“Duas séries
de iniciativas podem aproveitar, em grande escala, este potencial dos diretores
para promover mudanças: as que premiam escolas por alcançar metas de desempenho
e as que intervêm na formação dos diretores.”
“Escolas
(mais do que diretores individualmente) podem ser premiadas por alcançar metas
de desempenho, cujo cumprimento seria avaliado por comissões independentes. A
avaliação terá que levar em conta as circunstâncias de cada escola e o avanço
alcançado sobre o ponto de partida. Para não aprofundar desigualdades, o
estímulo ao êxito terá de ter como contrapartida medidas destinadas a corrigir
os malogros.”
Esta ação
deve ser combinada com outra, a formação de diretores. Para esta será criada um
rede regional de Centros de Formação de Diretores. Num primeiro momento eles se
destinam apenas à formação, em cursos intensivos, dos que já são diretores.
Depois passariam a formar candidatos a diretor. Sob acerto com os Estados, eles
aceitariam alterar suas carreiras e se comprometeriam a escolher seus futuros
diretores apenas entre os habilitados por estes Centros. Tudo isto por adesão
dos Estados federados, “motivada pela vantagem dos programas, inclusive acesso
ampliado a recursos do FNDE.”
Eis a
solução. Um amplo programa de criação de Centros Regionais de credenciamento de
diretores, combinado com pagamento de bônus para a escola que atinja suas
metas, após alteração na carreira.
A proposta permitirá
claramente caminhar para o cálculo de valor agregado, tomando-se como ponto de
partida o próprio desempenho da escola em um dado momento. Não há como fazer
isso, em escala, sem esta ferramenta.
A questão é
que não há tecnologia no campo da matemática e da estatística que
permita por em prática este plano em escala e de forma adequada. Os Estados
Unidos – com apoio de Bill Gates e sua fundação – investiram pesado nisso.
Fazem uso disso, mas não há estabilidade nos modelos. (...) A literatura sobre isso é
ampla e além das que já indiquei podem ser encontradas outras neste blog na
Bibliografia. Mas mesmo que se pudesse chegar a isso, o fato é que, como
apontamos no início deste post, a evidência empírica em relação aos resultados
obtidos por bonificação mostram que eles são pífios.
Continuamos
examinando neste post, as propostas da SAE para diretores e professores. No
caso dos professores, o documento trata em primeiro lugar, da qualificação.
Aqui a instituição será de Centros de Qualificação Avançada para professores.
“…estabelecimento
de Centros de Qualificação Avançada para professores. Tais centros ministrarão
cursos intensivos para suplementar a formação nos cursos de pedagogia e licenciatura,
desenvolver as práticas e os protocolos exigidos pelo
Currículo Nacional (Grifos meus LCF) e
discutir as experiências e inovações do professorado.”
O INEP
liderará este empreendimento e o PIBID será ampliado para apoiar o engajamento
de estudantes dos cursos de pedagogia nas escolas de ensino básico, sob
orientação.
O outro
aspecto diz respeito à carreira nacional e à Prova Nacional Docente, esta
última em elaboração junto ao INEP. Aqui aparece novamente a bonificação, agora
para professores:
“A União
deve propor aos estados federados diretrizes de carreira nacional de
professor.” (…) Esta carreira pode começar na forma de carreira especial e
suplementar para professores que se comprometam a manter
determinadas metas de desempenho ( Grifos
meus LCF)Receberiam adicional ao salário, depois de avaliação, por
avaliadores independentes, do cumprimento de tais metas.”
Note-se que
esta proposta foi feita há algum tempo, por ocasião da eleição do primeiro
mandato de Dilma, pelo grupo de apoio de seu concorrente, José Serra, que
perdeu as eleições. A alternativa que este grupo propunha para transformar
a carreira do magistério consistia na criação de uma estrutura de carreira
paralela e voluntária. Quem quisesse poderia optar por ela. A seleção seria
mais rígida, o salário inicial bem mais atraente (podendo depender da
disciplina), as avaliações mais frequentes e os salários baseados em uma parte
fixa e outra variável, dependendo do desempenho (medido pelo aproveitamento
escolar dos seus alunos). As contratações seriam via CLT, portanto sem garantia
de estabilidade. (...)
Há uma
crescente base empírica que desaprova os métodos de remuneração por
bonificação para os profissionais da educação. (...)
Como
complemento da carreira o documento propõe a Prova Nacional Docente.
“Exigiria de
todos os professores demonstrar que estão preparados para ensinar nas áreas
para as quais se credenciam. E, por isto mesmo, junto com as outras iniciativas
descritas em seguida, serviria como meio poderoso de influir nos cursos de
pedagogia e de licenciatura.”
Assim, chega-se
aos cursos de formação de professores. E por falar neles, vejamos o que propõe
o documento.
Trata-se de
construir programas de bolsas, como no caso do PROUNI – para atingir as
instituições privadas – “que condicione as bolsas à adaptação dos cursos a
protocolos curriculares e ao cumprimento de metas pré-definidas.”
Juntamente
com isso, “assegurar que cada professor no ensino básico tenha a versatilidade
necessária para ensinar duas ou três matérias. É condição para que se possa
fixar numa única escola”.
Em geral,
toda a produção acadêmica de décadas sobre o tema, ignoradas no passado pelos
governos, continua a ser ignoradas agora. As soluções brotam do
experimentalismo dos reformadores empresariais.
Esta primeira
parte do documento ainda aborda mais alguns temas que resumimos em seguida. Em
primeiro lugar faz-se referência ao uso de tecnologia e técnicas.
“A
transformação do ensino pode ser acelerada pelo uso criterioso de tecnologias
de dois tipos: as aulas em vídeos e os softwares interativos. Os primeiros
permitem enriquecer e sacudir o ambiente da escola com inspiração vinda de
fora. Os segundos acrescentam à inspiração vinda de fora a oportunidade para o
aluno avançar por conta própria.”
Mas nada
destinado a substituir o professor. O segundo ponto é uma queixa e tem um nome
bem sugestivo: “O problema maior: à busca da vanguarda pedagógica”.
Para a SAE
do governo Dilma:
“De todos os
obstáculos a enfrentar para dar prosseguimento a agenda como esta, que propõe
transformação profunda no ensino básico, com consequências também para o ensino
superior, o mais grave é a falta, entre nós, de vanguarda pedagógica.” (…) “A
vanguarda pedagógica precisa ser a principal portadora deste projeto. Ela ainda
nos falta.”
Não causa
espanto este diagnóstico. Feito de costas para a área da educação e suas
instâncias organizativas, não era de se esperar que se constituísse tal
vanguarda. Até porque se assim ocorresse ela poderia ser chamada mais
apropriadamente de retaguarda.
O terceiro e
último aspecto é a visão de que a proposta é “uma obra de libertação
e de construção nacional”. Alguns trechos dão a dimensão do romantismo: “o
Brasil é um caldeirão de energia humana”; “gênios que nascem e morrem não
reconhecidos, entre os milhões de trabalhadores”; “chegou a hora de tirar a
camisa de força”; e por aí vai.
Finalmente:
“O trabalho
a fazer tem, portanto, de avançar simultaneamente em três planos. O primeiro
plano é construção de um ideário. (…) O segundo plano é série de ações a serem
lançadas, em rápida sucessão (Grifos
meus LCF), a partir do lançamento da Pátria Educadora. (…) O terceiro plano é
consulta ampla dos interessados em todo o pais. Já começou: meio mundo em
matéria de educação no Brasil já foi consultado e opinou. Teremos críticos e
eventualmente adversários.”
E pontifica:
“A nação responderá com ardor. E quebrará as barreiras, objetivas e subjetivas,
à execução da obra libertadora.”
No próximo
post, começaremos a analisar a segunda parte do documento: “um elenco de ações
em ordem aproximada de implementação”.
Os posts
anteriores examinaram os aspectos teóricos da proposta Pátria Educadora da SAE.
Viu-se o marcado pragmatismo experimentalista presente na mesma, trazendo de
volta o “ensino por projetos” dos anos 20 do século passado proposto pelo
escolanovismo.
Como
salientou Saviani, os métodos produzem efeitos históricos pelos quais precisam
ser analisados e julgados, e não podem ser apenas examinados em si. O
julgamento da primeira onda escolanovista foi feito na década de 80. Seus
efeitos deletérios sobre a organização didática da escola e a penalização
exatamente das classes populares, constituem consequências que não podem ser
esquecidas. Na realidade tratou-se mais de efeito do ideário criado por ele, já
que de fato nunca chegou ao chão da escola pública.
A segunda
onda pragmatista-escolanovista retoma o método de projetos do pronto de vista
didático e o insere na camisa de força dos reformadores empresariais que faria
John Dewey, pai da primeira onda, recusar-se ser reconhecido nesta segunda
onda. Mas claro, agora outros são os pais.
Mas há que
se ter presente que a segunda onda, agora, vem com uma estrutura muito mais
definida e com muito mais recursos financeiros e de pressão. Seus efeitos
deletérios, portanto, podem ser ampliados desta vez. Protocolos (certamente de
projetos) substituirão as atuais apostilas de conteúdo por novas apostilas de
procedimentos. Os protocolos serão induzidos a partir da base nacional comum e
a peso de ouro.
A
desestruturação de conteúdos atingirá em especial as camadas populares com a
promessa de dominar o método de aprender. Não demorará muito para ouvirmos de
novo a estória do “dar a vara e não o peixe”. Será muito bom para as classes
mais bem favorecidas, as quais têm outras fontes de conhecimento fora da
escola. Mas será trágico para as camadas populares que dependem
fundamentalmente da escola para aprender.
O
experimentalismo como método de fazer política pública é um aspecto que
necessita ser considerado na proposta. Os experimentos e inovações são bem
vindos, mas não quando produzidos em escala com a possibilidade de
potencializar efeitos colaterais ou até mesmo equívocos que se espalhem em
cadeira afetando a vida de milhares de pessoas – pais, alunos, professores,
gestores, sob a batuta do cumprimento de metas regado a sacos de dinheiro do
governo federal.
Ao inserir a
nova onda pragmatista-escolanovista no seio das reformas empresariais, todo o
processo fica dependente das categorias que são definidoras destas reformas: a
responsabilização verticalizada desde Brasília, a meritocracia e a
privatização.
A primeira
onda da escola nova foi criada com a finalidade de dar suporte à emergência dos
Estados Unidos como império mundial. Ganhou mundo, mas em nenhum lugar promoveu
educação para todos. Sua retomada no Brasil, neste momento, em combinação com
as reformas empresariais, tenta ser a base para um novo momento econômico onde
o empresariado depende, fundamentalmente, do aumento da produtividade para
recompor suas taxas de acumulação de riqueza.
Neste
contexto de início de século XXI interessa armar as massas para o consumo, para
as novas lógicas de produção e, ao mesmo tempo, gerar uma camada de
trabalhadores que possa conduzir estes novos processos. É preciso
modernizar a escola, sem que ela perca sua função. Eis porque reaparece
novamente as escolas experimentais agora na forma de Escolas de Referência
Anísio Teixeira. A desculpa para a diferenciação é a de sempre: gerarão
inovações que depois (?) serão compartilhadas com as outras “escolas comuns”.
Mas não é só aí que se expressará a diferenciação: as “sequencias de
capacitação” operarão produzindo e ratificando alunos padrão, alunos especiais
de baixo potencial e alunos especiais de alto potencial, garimpando desde os
anos iniciais os futuros ocupantes das escolas de referência.
As promessas
da escola nova são anuladas pelos próprios conceitos das reformas
empresariais, pois comprometem a necessária confiança que é fundamental de ser
estabelecida entre os gestores, professores, alunos e pais. Todos, agora, estão
inseridos em uma concorrência pelas metas e pelas bonificações que
conduzirão à desmoralização do magistério e da escola pública.
O
escolanovismo e a reforma empresarial são duas ancoras da proposta que
levarão a Pátria Educadora para o oposto do que proclama, e a educação,
novamente, para mais uma década perdida. As evidências empíricas estão
disponíveis. Não estamos criando uma Pátria Educadora no sentido do real de seu
termo, mas uma Pátria Intervencionista e Controladora e que, mais grave ainda,
se converterá em uma Pátria Excludente e Disciplinadora. Nem John Dewey
assumiria este ideário.
Mas, se
serve de alento, há que se considerar a perspectiva iluminista da proposta ao
acreditar que inovações produzidas sob controle em Centros de Qualificação
e Escolas de Referência, se espraiarão pelas redes públicas. Neste sentido, o
dano pode ser minimizado, pois sabemos que não é assim que nasce a inovação.
Esta forma
de conceber a difusão da inovação já foi testada amplamente em reformas
anteriores e nunca chegou a cumprir seus propalados objetivos. Paulo Freire em
um livro escrito em 1969 mostra porquê. Ocorre que as inovações necessitam ser
recriadas localmente a partir de variáveis locais. Este processo de recriação,
na proposta, está comprometido pela pressa das metas e das avaliações, que
levarão a mera cópia e não recriação. E, fundamentalmente, está comprometido
pela quebra da confiança entre o magistério, pelo atropelo das relações locais,
pelo silenciamento das vozes no interior das escolas. Este limite natural, no
entanto, deixa suas marcas.
Não há nisso
nenhuma contradição. Há uma perfeita divisão de tarefas: o lado escolanovista,
ilustrará a cabeça da elite nas escolas de referência e o lado reformador
empresarial controlará as escolas comuns, de massa, aprofundando-se dessa forma
a segregação e a dualidade do sistema nacional de educação. Às elites, o
escolanovismo; aos pobres a disciplina e as reformas empresariais.
No próximo
post, farei um resumo das principais medidas que deverão ser postas em prática
“em rápida sucessão” após o lançamento do Pátria Educadora.
O caráter
interventor/disciplinador do projeto fica claro nas medidas propostas, com
afastamento de diretores e intervenção direta em escolas. A responsabilização e
a meritocracia permeiam suas ações. Fica claro também o caráter privatista
abrindo a intervenção para Organizações Sociais (em especial no item 8 do
primeiro bloco). As reformas empresariais podem ser identificadas claramente. A
superação a que se refere o documento em seu início é a tentativa de
associá-las a uma nova onda pragmatista escolanovista, introduzindo mudanças no
paradigma de ensino.
A realização
da Base Nacional Comum é colocada nas mãos de uma instituição específica (?)
com representantes dos três níveis da federação e da sociedade
civil. Esta era uma reivindicação dos reformadores empresariais quando se
iniciou a discussão desta questão. Em meados do ano passado divulgamos este posição aqui neste
blog:
Guiomar
[Namo de Melo] (…) Segundo a presidenta, há uma “firme disposição de continuar
esse caminho”. Ela acrescentou que é provável que o processo seja liderado por
um fórum interfederativo, com a participação do Ministério, dos estados e dos
municípios. “A base nacional comum é um projeto de país, o que nós queremos que
nossos alunos aprendam para sobreviver no século XXI. E mais, o grupo está propondo
que a liderança do processo não seja do governo federal, do MEC”.
Grifei as
ações que estão alinhadas com as críticas feitas nos posts anteriores e que
merecem ser examinadas com muito cuidado, com vistas à luta que deverá ser
travada.
“Cooperação
federativa no ensino: procedimentos de avaliação, apoio, socorro e correção
1.
Proposta de regras que desdobrem
o regime de cooperação instituído pelo artigo 7 da Lei 13.005 de 2014 (Plano
Nacional de Educação). Tais regras devem organizar a cooperação
vertical e horizontal dentro da federação. Incluirão
disposições destinadas a facilitar por meios próprios, como
consórcios e convênios, a colaboração entre municípios.
2.
Constituição de força-tarefa
composta por educadores e gestores recrutados dos três níveis da Federação para
trabalhar com as secretarias estaduais de educação na identificação
das escolas, ou de redes escolares locais, que mais urgentemente necessitam de
apoio — de orientação, quadros e recursos. Aproveitamento de
programas existentes, como o PIBID (Programa de Iniciação à Bolsa Docente) da
CAPES, para constituir quadro de apoio a estas iniciativas.
3.
Uso de recursos voluntários, a
serem discriminados a partir da reorientação dos programas do FNDE, para
financiar medidas de reforço e de apoio a tais escolas. Será a mesma fonte dos
recursos que financiarão o procedimento corretivo referido
adiante.
4.
Em segundo momento, constituição
de entidade, dentro do governo federal, desenhada para coordenar as ações de
cooperação com os estados em ações de socorro a redes escolares municipais ou
estaduais em dificuldade.
5.
Em terceiro momento, formação de
órgãos colegiados e transfederativos, com participação dos estados e
municípios, para coordenar ações destinadas a assegurar patamar nacional mínimo
de desempenho e qualidade. Tais órgãos tomarão iniciativas de apoio, de gestão
e de direcionamento de recursos humanos e financeiros. Poderão,
quando necessário, afastar e substituir diretores de escola.
6.
Aperfeiçoados seus instrumentos,
a ação transfederal avançará sempre em duas etapas. A primeira etapa é apoiar
as redes escolares locais em dificuldade crítica, reforçando seus recursos. A
segunda etapa, quando tal apoio não for suficiente para corrigir desempenho
inaceitável, é recorrer a procedimento de resgate, que
pode incluir a substituição temporária de gestores locais, a reorientação de
práticas e a mobilização de recursos financeiros e humanos adicionais. Formulação
de regras para definir desempenho crítico, e para discriminar quem
tem legitimidade para propor o procedimento corretivo, para determiná-lo e para
executá-lo.
7.
As medidas previstas aqui
começarão por reorientação de práticas, sob as leis em vigor. Continuarão por
mudanças legais que regulem o artigo 23 da Constituição (que trata das
competências concorrentes dentro da Federação) e que desenvolvam o regime de
cooperação previsto no artigo 7 da lei 13.005 de 2014 (Plano Nacional de
Educação).Serão aprofundadas, se necessário, por meio de propostas de
emenda constitucional.
8.
7. O INEP, reforçado,
terá entre suas funções a de identificar as práticas mais bem sucedidas e de
difundi-las dentro da Federação.
9.
Aproveitamento de instrumentos
jurídicos como as Organizações Sociais e as Sociedades de Propósito Específico
para facilitar o engajamento experimental de equipes de educadores vindos de
fora do sistema público na construção deste sistema. Tais
equipes poderão atuar sobretudo no desenvolvimento de novas tecnologias e
técnicas, nas sequências curriculares especiais,inclusive nas
iniciativas supletivas para alunos em dificuldade, nas escolas de referência e
nos Centros de Qualificação Avançada para professores.
10. Uso da Prova
Brasil como base para organizar Cadastro Nacional de Alunos. Além
de aumentar o nível de informação a respeito do sistema público, o Cadastro facilitará
a individualização de oportunidades de ensino: as
iniciativas de apoio a alunos com baixo desempenho e a admissão de alunos a
programas mais exigentes e a escolas de referência.
Reorientação
do paradigma curricular e pedagógico: a base nacional comum
1.
O objetivo da construção do
Currículo Nacional (Base Nacional Comum) é substituir uniformidade
desorganizada por diversidade organizada: sistema nacional de educação que,
aberto a alternativas, seja capaz de evoluir à luz da experiência. A
organização do Currículo Nacional será coordenada por instituição específica
que conte com representantes dos três níveis da Federação e da sociedade civil.
2.
A Base Nacional Comum abandonará
o enciclopedismo raso que tradicionalmente marca nosso ensino. Não se contentará,
porém, em colocar enciclopédia menor — conjunto de conteúdos consagrados — no
lugar da enciclopédia maior. Dará a capacitações primazia sobre
conteúdos. E na maneira de tratar conteúdos preferirá o aprofundamento seletivo
à superficialidade abrangente. (…)
3.
O eixo do Currículo Nacional
será Sequência Padrão de Capacitações, com foco maior
em análise verbal (interpretação e composição de texto) e raciocínio lógico e
matemático. Nos níveis superiores do ensino básico, haverá liberdade crescente para
desenvolver as capacitações no contexto de estudo aprofundado de conteúdos
variados. A composição do ENEM, transformado em ENEM digital, será
usada para qualificar o exercício desta liberdade na escolha de conteúdos
curriculares.
4.
Ao lado da Sequência Padrão
haverá Sequências Especiais para alunos com maior dificuldade ou
maior potencial. As Sequências Especiais não serão apenas
versões mais lentas ou mais aceleradas da Sequência Padrão. Serão espaços para
experimentos e para individualização do ensino.
5.
As iniciativas de apoio a alunos
em dificuldade terão sempre o sentido de devolvê-los o mais
rapidamente possível à Sequência Padrão. (…)
6.
A formulação e implementação do
Currículo Nacional estarão comprometidas com a superação das barreiras
pré-cognitivas ou socioemocionais que inibem muitos alunos, sobretudo pobres,
de dominar as capacitações analíticas. (…)
7.
As capacitações de comportamento
que têm a ver com disciplina. O meio melhor para promovê-las são iniciativas
que vinculem a escola à família e apoiem famílias desestruturadas, ao engajar a
criança na escola em turnos escolares ampliados.
8.
As capacitações de comportamento
que dizem respeito à cooperação. (…) A melhor maneira de contribuir ao
desenvolvimento de capacidades de cooperação é organizar o ensino em forma
cooperativa: equipes de alunos e de professores que, ao cooperar,
superam melhor e mais rapidamente suas limitações.
9.
A União estabelecerá, no ensino
médio, rede federal de escolas de referência chamadas Escolas Anísio Teixeira,
a que alunos serão admitidos por concorrência. E
tomará medidas para preparar alunos da rede públicos para concorrer à admissão.
As Escolas Anísio Teixeira trabalharão em estreita ligação com os Centros de
Qualificação Avançada para professores.
10. A Secretaria
de Ensino Básico do Ministério da Educação atuará junto com os Centros de
Qualificação Avançada, descritos adiante, para estabelecer
repertório abrangente e pormenorizado de protocolos que exemplifiquem maneiras
de ministrar, em cada aula, os elementos do Currículo Nacional. Tais protocolos
estarão amplamente disponíveis aos professores em textos e em
aulas-demonstração. O objetivo será ajudar o professorado a implementar o novo
currículo e o paradigma pedagógico. O livro didático deixará de ser o guia.
Destaca-se
neste conjunto de ações os processos de certificação de Diretores e Professores
e os programas de bonificações por mérito, bem como a instauração de uma
carreira paralela por adesão voluntária do estado e do professor, com
bonificação para quem tiver atingido metas a partir de avaliação. Continuemos
com a apresentação das ações previstas.
ENEM Digital
Lançamento
do ENEM digital, precedido de consulta pública e de edital de itens. Será um
banco de milhares de questões que permitirá ao aluno prestar o exame a qualquer
momento.
1.
O ENEM digital será
disponibilizado em círculos concêntricos. (…)
2.
Além de ser conveniência para os
examinados, a flexibilização do ENEM facilitará seu uso para influir
no currículo e na prática pedagógica.”
Diretores:
centros de formação
1.
Iniciativa para qualificar e
incentivar diretores de escolas. O programa comportará duas ações principais. (…)
2.
Estabelecimento de sistema de
incentivos a escolas e a seus diretores. A premiação pelo alcance de metas de
desempenho será para toda a escola. Os diretores receberão também prêmio
salarial, de uma só vez no final do ano letivo, mas sempre no contexto da
premiação maior para a escola como um todo. A avaliação, feita por comissões
independentes, levará em conta as circunstâncias de cada escola e o avanço
alcançado sobre o ponto de partida. Tais medidas
de estímulo terão por contrapartida as ações corretivas descritas
na parte deste elenco de iniciativas que trata do federalismo cooperativo.
Sem tal contrapartida apenas aumentariam a desigualdade dentro da federação.
3.
Inauguração de rede regional de
Centros de Formação de Diretores, estabelecidos em cada região do país e nas
maiores cidades. Em primeiro momento, os Centros trabalharão para qualificar
diretores já em exercício por meio de cursos concentrados. Em segundo momento,
receberão, em cursos mais longos, candidatos a diretor. Nesta segunda etapa da iniciativa,
candidatos a diretor, pelos métodos previstos em cada estado, terão
de ser previamente habilitados pelos Centros de Formação.
4.
Para ambas as iniciativas, o
mecanismo de inclusão será adesão dos estados federados, motivada
pelas vantagens dos programas, inclusive acesso ampliado a recursos do FNDE.
Professores: Centros de
Qualificação Avançada e ampliação do PIBID
1.
A inauguração dos Centros de
Formação de Diretores será seguida pelo estabelecimento de Centros de
Qualificação Avançada para professores. (…)
2.
Os Centros de Qualificação
Avançada funcionarão em colaboração com o INEP e com a instituição que liderará
a cooperação com os estados e, depois, com os colegiados transfederais antes
referidos como instrumentos da cooperação federativa em educação. Usarão as
Escolas Anísio Teixeira como espaço para experimentos pedagógicos. Os
melhores resultados poderão ser disseminados no sistema nacional de ensino.
3.
Será ampliado o Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) que engaja estudantes
dos cursos de pedagogia nas escolas do ensino básico sob a orientação de quadro
de professores recrutado de todo o país. Este quadro de
orientadores terá engajamento também nos Centros de Qualificação Avançada e
servirá como um dos componentes da vanguarda pedagógica portadora de todo este
projeto de qualificação do ensino básico.
Professores:
carreira nacional de professor e Prova Nacional Docente
1.
A União proporá aos estados,
mediante mecanismo de adesão, diretrizes de carreira nacional de professor,
vinculada ao piso salarial. Os professores continuarão a ser
funcionários dos respectivos estados e municípios. A carreira será, porém,
normatizada nacionalmente. O piso nacional será vinculado aos
planos de carreira. E será fixado de maneira a respeitar as
diferenças regionais e a acomodar a adequada progressão na carreira. Os
estados que aderirem terão, como atrativo para aderir, acesso ampliado a
recursos do FNDE.
2.
O estabelecimento da carreira
nacional de professor será precedida pela organização de carreira
nacional complementar de professor. A adesão terá de ser
dupla: pelo estado e pelo professor individual. Exigirá
do professor passar por prova de certificação que dará admissão ao programa. O
professor que for habilitado e que mantiver padrão de desempenho,
independentemente formulado e avaliado, receberá acréscimo a seu salário.
3.
Estabelecimento de Prova Nacional
Docente para certificar os professores depois da licenciatura. (…)
A Prova Nacional Docente servirá como maneira de influir nos cursos
de licenciatura e de pedagogia. (…)
4.
Variante do PROUNI, o PROFAPED,
será inaugurado para conceder bolsas de estudo a estudantes que ingressem nos
cursos de pedagogia e de licenciatura. A condição para concessão
das bolsas será a adesão das respectivas instituições universitárias privadas a
padrões de currículo e de desempenho fixados pelas autoridades federais. (…)
Tecnologias
e técnicas
1. O governo
confirmará a disposição de combinar no ensino básico, e sobretudo no médio,
educação por professor e educação por vídeo, em duas formas: (a) as aulas
veiculadas por vídeo quer padronizadas, quer transmitidas de outra escola ou de
outro centro e (b) os softwares interativos e progressivos. O sentido será o de
multiplicar instrumentos à diposição do professorado, não o de substituir o
professorado. E, com isto, acelerar a transformação pretendida. (…) Cinco
conjuntos de iniciativas ajudarão a viabilizar este avanço. (…)
Não
temos a pretensão de um “gran finale”. Aliás, é preciso esclarecer o sentido
deste conjunto de longos posts divulgados nos últimos três dias neste blog. São
“escritos de guerra”, no sentido de que estão mais voltados para o
posicionamento de primeira hora frente a grave momento nacional para a
educação, e menos para a precisão acadêmica.
Aprendi
com os movimentos sociais que em determinados momentos da vida, temos que
“arriscar o diploma”. Correr o risco da imprecisão e até do equívoco, o qual
certamente será corrigido pela ação colaboradora dos que estarão caminhando na
mesma direção. Peço portanto, em especial à academia, que julgue com
indulgência esta iniciativa e que releve as imprecisões e omissões que
certamente uma reação de “auto-defesa” pode gerar. Não há tempo para esperar
por teses e dissertações que tratem a questão em profundidade. Elas virão
depois. Mas aí, os fatos já estarão consumados. Não há tempo para “reuniões
científicas de análise”. As decisões estão sendo tomadas agora e como diz o
documento da SAE, deverão ser postas em prática logo após o lançamento do
Pátria Educadora, “em sucessão rápida”.
O
momento da intervenção política nem sempre coincide com o tempo acadêmico. E
nesta matéria, não podemos chegar atrasados – ainda que possamos cometer alguns
deslizes. Eles serão corrigidos pelo conjunto dos envolvidos.
Não
podemos ser surpreendidos como o foi Arquimedes em seu local de trabalho.
Conta-se que Arquimedes ao ser abordado pelos soldados invasores que haviam
tomado, sem que ele percebesse, a cidade, disse: “Noli turbare circulos meos!”
– algo como, “não perturbem meus círculos”. Arquimedes desenhava neste momento
as órbitas dos astros para estudá-las. Em seguida, foi morto pelos soldados.
Ao
silêncio da busca da precisão, enquanto se constitui a “vanguarda” que reclama
Mangabeira e que conduzirá o projeto da SAE, prefiro o “barulho” que apesar de
impreciso pode alertar e reunir forças pela defesa da ampliação de um projeto
social que – bem ou mal – esteve em construção nos últimos anos no Brasil e
que, pelo menos em tese, nos permite outras concepções de educação.
Anotações econômicas
Nossos
amigos sociólogos, historiadores e economistas, entre outros, certamente nos
brindarão uma análise dos acontecimentos socioeconômicos das últimas décadas
com muito mais precisão. Mas creio que podemos anotar que o projeto social de
desenvolvimento dos últimos 12 anos sacudiu o andar de baixo da sociedade
produzindo a incorporação – junto com outras variáveis do próprio capitalismo –
de milhões de pessoas a uma vida mais digna. Esta pauta era exigida pelo
próprio Consenso de Washington II que Fernando Henrique Cardoso não teve tempo
de executar.
Penso
que a situação atual na qual as insatisfações explodem nas ruas – além da hábil
exploração feita de fatos lamentáveis e condenáveis pela mídia – são
também motivadas pelo despertar de milhões para as virtudes do consumo e da
vida melhor que passaram a visualizar. Entre os clamores está o acesso à
educação que figura como aquela via pela qual podem ter mais consumo e mais
posição social – ainda que nós saibamos que há nisso mais ilusão do que
realidade.
Na
outra ponta da contradição, estão os empresários. Estes assistiram os salários
mais baixos aumentarem ao longo da década em mais de 150%, produzindo a
elevação da massa salarial média, tendo a produtividade – que no Brasil já é
baixa – crescido em torno de pífios 1 ou 2%. Resultado: criação de um ambiente
que requer aumento de produtividade para poder puxar investimentos, para
saciar as perspectivas de ganho do empresariado. Média salarial subindo,
produtividade estagnada.
Anotações políticas
Certamente
sendo simplista, imagino que aí estejam os focos básicos que explicam o
desencanto com o governo Dilma tanto à direita como à esquerda. O governo do
PT, principal partido condutor deste processo, não teve a capacidade para em
seu conjunto, imaginar o momento seguinte de um processo que pôs em marcha e
não conseguiu criar sua continuidade nem como ideário, nem como plano de
governo. Com isso, o processo esgotou-se.
Mais
ainda, para manter-se nesta direção, desde o início foi obrigado a estabelecer
alianças exatamente com partidos de centro e até com certa parte do
empresariado. Destaque-se a aliança com o PMDB. As últimas eleições escancaram
estas realidades fazendo com que o eixo do poder se deslocasse do PT para o
PMDB, que é quem de fato governa o país.
A
composição dos ministros do segundo governo Dilma é feita neste contexto de
dependência e alianças com a centro-direita. Katia Abreu, o ex-ministro Cid
Gomes (que vinha participando da elaboração do atual documento da SAE até antes
de deixar o ministério) e o próprio Roberto Mangabeira Unger que ocupa hoje a
SAE. A SAE desde sempre foi um lugar conservador. Dali sempre saíram ideias
conservadoras e sempre os reformadores empresariais da educação
tiveram nela local fértil para a aceitação das suas ideias. Há que se
lembrar que bem próximo dali, respondendo diretamente à presidenta, estava o
atuante Gerdau, o magnata do aço e presidente do Movimento Todos pela Educação,
entidade que congrega no Brasil os interesses empresariais na educação.
Todo
este quadro aqui rapidamente simplificado e impreciso, serve para nos alertar
dos caminhos a seguir. A primeira reação que temos que evitar, neste momento, é
escolher a vítima como réu. O PT e sua presidenta, Dilma, são vítimas de um
processo político que não puderam ou não souberam (a história esclarecerá
melhor) conduzir. Individualizar toda esta gama de variáveis políticas e
econômicas na figura da presidenta, além de ajudar a oposição a destruir o que
resta do projeto social que defendemos, ainda nos levaria a errar o alvo e
simplificar o debate político, econômico e social. Não acho que a questão seja
de simples “estelionato eleitoral” como às vezes confesso que penso.
Trata-se
de uma complexa trama social que precisa ser melhor analisada. A dificuldade,
no entanto, é que precisamos intervir já. Mas temos que evitar os oportunismos
de direita e de esquerda. A direita farejou fim de ciclo político e age para
acelerar este fim e ao mesmo tempo posicionar-se como sucessora. O PMDB e o
PSDB disputam neste momento este posto de sucessão. A divisão do PMDB não é
novidade e responde ao fato de que ele, sempre, ao longo da história do Brasil,
foi um partido que esteve com os pés no mínimo em duas canoas. Com isso está
sempre no poder. A dualidade atual não é outra coisa.
No
âmbito da esquerda, também há o mesmo movimento. PSOL e PSTU disputam o espolio
do PT. Não que deixem de ter razão em grande parte de suas críticas. Elas foram
feitas e não foram ouvidas, quando não ridicularizadas de forma arrogante.
Neste
momento, no entanto, precisamos evitar este enquadramento político. Atuando na
ótica do estilo político que se desenvolveu nos últimos anos – luta desenfreada
por posições de poder – perdemos visão estratégica, contentando-nos com uma
luta tática de espaços a serem ocupados, ou de visibilidade que credencie este
ou aquele a herdeiro e condutor de um processo. Pode não sobrar para ninguém.
A
ideia mais adequada que tenho ouvido é a da constituição de uma frente política
de esquerda. Penso que a solução esteja nesta direção. Para tal, é preciso
demover a esquerda de copiar a direita. É preciso olhar para o interesse de um
projeto progressista e avançado, este sim uma verdadeira “obra de libertação
nacional”. Mais do que procurar culpados, é hora de nos entendermos sobre o
projeto que dará continuidade aos esforços feitos até agora, pois mais que
possam ser criticados. Mas a frente é para ganhar espaços nas políticas e na
sociedade e não mera sistemática de partilha de poder.
Implicações educacionais
Neste
contexto, o que temos neste momento é que a área da educação foi tomada pelo
projeto político de centro-direita que visa recompor os índices de
produtividade brasileiro e recompor para mais as taxas de acumulação de
riqueza, para que voltem a motivar investimentos e crescimento econômico. O
governo tem ciência disso, e trata o presente momento como uma espécie de “mal
necessário”, para em seguida tentar retomar seu projeto social. Penso que não
será assim. Encurralado, a margem de reação é pequena. É levado a tentar fazer
o projeto da centro-direita, como forma de deter a própria centro-direita no
momento seguinte e retomar o seu projeto. No entanto, esquece-se que há vida
inteligente do outro lado também.
Vimos
examinando o documento da Secretaria Estratégica da Presidência da República do
Governo Dilma. Trata-se de versão preliminar, porém, nem tanto, pois é versão
que foi “discutida com meio mundo”, segundo o documento. Não tão preliminar
assim, portanto. Isso de partida coloca uma questão: foi discutida com “meio
mundo”, mas foi discutida com quem deveria, em especial no âmbito das entidades
educacionais?
Se
foi, temos uma situação complicada para nossas entidades científicas e
sindicais que eventualmente possam ter estado participando na elaboração de um
documento desta ordem, pois isso sugere que aceitaram a tese de que este
documento pode ser “melhorado”. Por outro lado, se não participaram, têm que
dizer de imediato. Surpreende que divulgado no dia 22 de abril, tenhamos
profundo silêncio no campo educacional, seja das entidades científicas seja das
sindicais ou de outra natureza. Um documento desta ordem, com tal ideário, tem
que ser denunciado de imediato. Não é matéria que se possa aguardar, discutir e
melhorar.
Não
é possível resolver os problemas conceituais deste documento em reuniões de
gabinete ou nos corredores do MEC e da SAE. Não podemos, exatamente porque a
recusa se refere aos conceitos básicos que ele carrega – pragmatismo
escolanovista combinado com as reformas empresariais. Não dá para “melhorar”.
Ele responde a outro projeto de sociedade e de educação. Aqui a comparação com
o agronegócio é esclarecedora. Não dá para termos uma proposta de melhorar a
implementação do agronegócio no Brasil. Ele corresponde a outro projeto
econômico, social e político.
Pressionados
pelas reivindicações à direita, dos empresários que querem o avanço dos índices
de produtividade, e à esquerda, pelas ruas que demandam mais acesso a consumo e
portanto a melhores condições de vida, acreditando que a educação é aquela que
lhe servirá de passaporte para o consumo, a solução que emerge não poderia ser
diferente. A solução é uma combinação de ajuste fiscal (com efeito na reserva
de mão de obra para reduzir salário no curto prazo e recriar parâmetros
econômicos favoráveis, inclusive no campo da infraestrutura) com reformas
empresariais na educação que mobilizem o setor privado, inclusive via
terceirização por concessão, a dar conta do imenso passivo educacional, o que
poderá aplacar “as iras” das reivindicações das ruas.
No
próximo post finalizamos, de fato, nossa análise.
...
O modelo que está sendo criado
Neste
processo, insere-se o documento da SAE e não é por acaso que este órgão se
chama “secretaria de assuntos estratégicos”. A questão, aqui, também não é
personalizar o documento na figura de Mangabeira Unger. Ele é só um
instrumento, o mensageiro – ainda que um mensageiro privilegiado que deixa suas
marcas pragmatistas no modelo, bem ao sabor dos reformadores empresariais da
educação, os quais detestam discutir “filosofia”, “conceitos” e “ideologia” –
ainda que os pratiquem implicitamente.
O
documento parte da constatação que, em matéria de avaliação, “estamos na
vanguarda do mundo”. Não é mera perfumaria. O centro da proposta é a avaliação.
Toda reforma empresarial tem na avaliação um lugar de primazia.
O
documento refere-se formalmente ao ENEM digital, mas está implícita toda a
bateria de exames anteriores, ANA, Prova Brasil e as centenas de variações
destes exames ao nível estadual e municipal. Mas o grande norte é o ENEM
digital que encarna a Base Nacional Comum curricular e que deve orientar o
currículo do ensino médio e por extensão, dos anos anteriores articulando-se a
outras avaliações e à base nacional comum.
O
alinhamento do ENEM à base nacional comum garante um eixo de
progressão para os estudantes, ao longo de “sequências de capacitação”
diferenciadas. Ao longo de toda a formação, o aluno pode fazer o ENEM o que,
associado a outras avaliações nacionais e às ações que se articularão dentro
das redes e das escolas, permitirá permanente monitoramento do desempenho do
aluno e enquadramento das crianças nas variadas sequências de capacitação. Tudo
a título de retirar a criança dos patamares inferiores com atenção diferenciada
e descobrir talentos. Note bem: as organizações sociais serão convocadas à
experimentação e adição de novas formas de lidar com esta questão trazendo a
visão “de fora da rede”. Registre-se que este foi o motivo original da criação
das escolas charters nos Estados Unidos – ajudar a rede pública. Depois, tomou
o seu lugar com a terceirização por concessão.
Tais
sequências conduzirão a três trilhas de progressão no interior das redes: uma
sequência padrão, uma sequência infra-padrão, representada por estudantes de
menor potencial, e uma supra-padrão, representada pelos alunos de maior
potencial. Os estudantes que entram na sequência de capacitação inferior, o
fazem apenas para “retornar o mais rapidamente possível à sequência padrão”,
diz o documento, num romantismo idealizado que mostra todo seu desconhecimento
pela realidade das escolas e das camadas mais pobres da nação. Mostra também
sua visão elitista, colonialista, uma “inclusão envergonhada” sob autorização
expressa dos exames que devem marcar a aceitação e o compromisso formal do
estudante de disciplinadamente e cooperativamente integrar-se ao que já está
dado. Aqui acaba o experimentalismo de Mangabeira. A função desta trilha de
progressão para o aluno é colocá-lo em seu devido lugar e criar o horizonte de
estudos para a massa de estudantes comuns: a sequência padrão. Mas só para os
que se esforcem e sejam bem comportados.
Os
estudantes que se revelam “talentosos” têm caminho próprio. São oriundos das
camadas mais privilegiadas e já dispõem de “habilidades socioemocionais
adequadas” e já estão mais próximos da cultura escolar. A máquina montada visa,
ao longo do ensino básico garimpar talentos, dar-lhes um curso próprio,
reservando aos outros acesso à sequência padrão como ideal e, na prática, ao
que puderem obter dentro do sistema educacional. De quebra, cria a
justificativa para a não inclusão: não houve esforço, ou o estudante não
conseguiu, apenas de lhe ser dada oportunidade.
É
neste sentido que se deve entender a expressão “organizar a diversidade” que
também pode ser lida como “colocar cada um no seu lugar”. Mais ainda: neste
país, sabemos bem que para os portadores de necessidades especiais (cegos,
surdos e outros), não há lugar. Serão dramaticamente atingidos por este
processo. A experiência americana revela claramente isso.
Esta
máquina toda tem como expressão pedagógica a implantação (além da base nacional
comum) de uma série de “protocolos” que devem guiar o professor. Como o
documento recusa a ênfase no conteúdo, devemos pensar que serão protocolos de
projetos, à moda escolanovista dos métodos de projetos ou similares. Aqui, o
rigor do controle via avaliação, combina-se com a flexibilização curricular e
pedagógica no interior das escolas e produzirá o maior processo conhecido de
fragmentação e banalização de conhecimento que só poderá ser compensado pela
implantação de formas de preparação para os testes em simulados e na permanente
aplicação de testes que modularão em qual sequência o aluno deve estar
presente. Este permanente monitoramento é dado pelo ENEM digital e pelas outras
avaliações.
O
estreitamento curricular se imporá na direção já anunciada pelo documento
(leitura e raciocínio lógico), ou “capacitações analíticas”. Artes,
desenvolvimento corporal, história, geografia entre outras disciplinas, não
terão lugar relevante. Pode-se imaginar o que acontecerá com a educação
infantil frente à tendência de antecipação da escolarização que este projeto
gerará.
Este
modelo será amplificado de fora para dentro pela ação dos incentivos e pelos
mecanismos de punição, corretivos que permanentemente estarão diferenciando as
escolas, diretores e professores em escolas e redes de sucesso e escolas e
redes “defeituosas” como diz o documento e que precisam ser “consertadas”. A
mídia fará o resto. E como é a pobreza que derruba a média das notas, a ação se
voltará (inclusive pela explicita vocação disciplinadora do projeto) contra as
camadas populares que além de privadas de acesso ao conteúdo organizado, ainda
serão obrigadas a ter bom desempenho nos testes e avaliações via preparação
para testes – daí a ênfase na disciplina que o documento traz. A flexibilização
do acesso ao conhecimento em projetos exige, como base, um ato de disciplina
individual do aluno, sem o que o ensino fica banalizado. As camadas sociais com
cultura mais próxima à escolar, obviamente, são as que mais se adaptam a estas
estratégias. As demais devem aprender a ser disciplinadas no contra turno da
escola – nova versão do Programa Mais Educação e “novo” entendimento de Escola
de Tempo Integral.
O
enquadramento de diretores e professores e sua qualificação será direcionada
aos protocolos das sequências capacitadoras – ou não serão credenciados uns, os
professores e diretores, ou não terão dinheiro outros, as escolas e as
Universidades que formam professores. Tudo sempre voluntariamente. A
desqualificação das agências formadoras e do magistério se fará em grande
escala, despolitizando e criando um processo de formação raso para nossos
profissionais. Nada impede que os próprios Centros de Formação anunciados sejam
eles mesmos terceirizados para ONGs.
A
cooperação, anunciada pelo projeto, é aqui uma exigência escolanovista e dos
setores produtivos. Por ela se justifica que os alunos sejam agora divididos em
equipes, provavelmente de pesquisa. Aparentemente, isso deveria ser melhor do
que nossas tradicionais organizações didáticas. Mas, não se pode esquecer que
sob a batuta dos exames e das sequências de capacitação, estes grupos podem
facilmente incorporar a natureza das próprias sequências e ganharem,
dentro das escolas e salas de aula, a identificação dos alunos que os compõem –
padrão, baixo potencial e alto potencial -, servindo de caracterização e
rotulação das crianças. Já se pode imaginar onde serão inseridos nossos alunos
portadores de necessidades especiais. Alguém acha que será diferente, valendo
incentivos financeiros? Só quem não conhece a escola e as consequências das
políticas dos reformadores empresariais mundo afora – inclusive aqui perto, no
Chile.
A
tendência será a ênfase nos alunos das sequências padrão, com atenção para que
os da sequência de alto potencial não se convertam em padrão, garantindo as
médias elevadas da escola. A sequência de baixo potencial será relegada ao
contraturno por ser indisciplinada ou não ser cooperativa, um verdadeiro gueto
escolar, e pode, no máximo, com sorte voltar à sequência padrão. Não deverá
surpreender se escolas inteiras, sob a pressão dos incentivos financeiros, em
determinados territórios, forem relegadas à tarefa de lidar com os alunos de
baixo padrão. Nem deverá surpreender se a terceirização por concessão se
iniciar exatamente por estas escolas e alunos. Há exemplo histórico.
Assim,
ao longo da educação básica, a diversidade será organizada. Alunos comuns serão
destinados às escolas comuns, alunos talentosos serão destinados às Escolas de
Referência de nível médio e, posteriormente, às universidades. Claro, sortudos
das demais classes sociais poderão participar. A isto pode-se chamar de
organizar a diversidade – ou seja, colocar cada um no seu lugar.
Está
em curso a montagem de uma grande máquina de segregação escolar que deverá
descomprimir a atual e futura demanda sobre a educação escolar (associada à
redução de nascimentos de crianças), colocando cada um no seu lugar segundo
suas expectativas sociais, origem social, sequências de capacitação e claro,
espelhando ao mesmo tempo quanto dinheiro se carrega no bolso. Exceções são
admitidas. Está em curso, igualmente, o alinhamento das escolas com as
necessidades dos empresários por qualificação de quadros talentosos e pela
disseminação de habilidades fundamentais para o consumo das massas, tendo como
norte imediato o aumento da produtividade e a redução do salário médio por
aumento da oferta de trabalhadores qualificados.
Não
há na proposta nenhuma visão educativa de fôlego que nos levasse a pensar sobre
um projeto de nação para a juventude. Não há nenhuma análise relevante sobre os
efeitos de variáveis externas explicativas do desempenho do aluno que somam, em
conjunto, 60% da explicação do sucesso do aluno. Tudo se passa no interior da
escola sob a batuta do controle e dos incentivos financeiros.
As lutas
Finalmente,
cabe pensar na luta. No imediato, cabe mobilizar a força das centrais sindicais
e das entidades científicas. Se necessário, acordá-las para a gravidade da
proposta. Insisto, não se trata de proposta que se possa “aprimorar”.
Mas
será muito difícil no clima atual, barrar o andamento desta matéria. Teremos
que pensar em uma luta permanente que deve começar a ser delineada já. Pela
experiência de outros países (Chile e Estados Unidos em especial), este
processo não será detido por cima, pelas entidades e pelo governo, mas por baixo,
pelos atores das escolas (novamente vide Chile). No Estado de Nova York, neste
momento, entre 100 e 200 mil pais estão retirando seus filhos dos testes de
larga escala, valendo-se da Lei Opt out
que permite aos pais sair dos testes. Mas é possível que teremos um ciclo longo
de política conduzida pelos reformadores empresariais que no início poderá até
contar com algum suporte de setores da área educacional.
Mas
a luta se imporá, pelo simples fato de que em todos os países onde estas teses
foram implementadas elas não só descumpriram o proclamado em relação aos
estudantes, mas geraram consequências nefastas que se tornam, no decorrer do
tempo, visíveis para pais, gestores, funcionários, professores, alunos e,
principalmente, os pais – a Cidade Nova York levou 12 anos para derrotar
Bloomberg e suas políticas de reforma empresarial baseadas em
bonificação. Mas em todos os casos, foi aberto um farto mercado ocupado
pela indústria da avaliação e da consultoria, pela terceirização por concessão
e vouchers, e pelas ONGs.
É
neste setor dos atores da escola que se deverá promover a aliança. Atenção
especial teremos que dar ao diálogo com os pais e com os estudantes. Serão
estes os que despertarão, pela prática da luta, as centrais sindicais, as
entidades científicas e os governos.
Lamentável
que tenhamos entrado na era dos reformadores empresariais. Temos que pensar
agora em abreviar sua duração e em como vamos salvar nossas crianças e jovens
deste massacre que abaterá sobre nossas escolas públicas, caso não logremos
reagir com força à altura.
A
democracia exige escolas públicas. Só a escola pública pode conduzir, nos
limites da sociedade liberal, a democratização da educação. Estamos diante do
maior ataque às nossas escolas públicas, à concepção de ensino público, gratuito
e laico.
À
luta, longa, mas certamente vitoriosa.
26ª Nota Pública do Fórum Nacional de Educação – O Brasil
como efetiva Pátria Educadora
Brasília, 29 de abril de 2015.
NOTA PÚBLICA DO FNE
O
Fórum Nacional de Educação (FNE) instituído como órgão de Estado pela Lei
13.005/2014, vem a público, manifestar-se no debate em curso sobre o documento
Pátria Educadora: A qualificação do ensino básico como obra de construção
nacional – Versão Preliminar, elaborado pela Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República, veiculado em 22 de abril de 2015.
O FNE
já se manifestou na 25ª Nota Pública, divulgada em 24 de março de 2015, sobre a
pertinência e a urgência de dar consequência ao lema Pátria Educadora. No
entanto, torna público sua discordância com o processo de elaboração e o
conteúdo do documento em debate, explicitando abaixo algumas das divergências:
a)
reafirmamos que o PNE e o Documento Nacional da Conae/2014, realizada no
período de 19 a 23 de novembro, tratam da Educação Nacional, em todas suas
etapas níveis e modalidades, portanto, o direito a educação de todos e todas,
que precisam ser considerados na sua diversidade e complexidade, não sendo
reduzido ao conceito de ensino básico, reiterado diversas vezes no documento
supracitado.
b) o
Sistema Nacional de Educação é fruto de uma construção histórica, com muitos
embates já vivenciados e que alcançam no século XXI todo um esforço de
realização das conferências municipais, distritais, estaduais e nacionais; a
instituição dos fóruns municipais, estaduais e nacional, ainda distante da
configuração de um federalismo cooperativo, todavia, nos habilita a discordar
da visão de que “A educação pública no Brasil tem sido simultaneamente
desorganizada e uniforme: uniforme no conformismo com a mediocridade.” (p.6)
c) em
relação a maior organicidade entre financiamento e gestão da educação,
reafirmamos a necessidade de assegurar a ampliação dos investimentos, de forma
a cumprir a meta de 10% do PIB, considerando a repactuação da distribuição
destes recursos entre os entes federativos, implicando em mais do que uma
rearticulação das funções do FNDE, em contraponto ao modelo sugerido no
documento e na direção do que está previsto no PNE, conforme prevê o Artigo 7º
§ 5º da referida Lei que trata da instância permanente de negociação e
cooperação.
d)
reiteramos que a pauta da valorização dos profissionais encontra-se equivocada
em várias das suas considerações no documento: retoma o destaque para premiação
por desempenho “Duas séries de iniciativas podem aproveitar, em grande escala,
este potencial dos diretores para promover mudanças: as que premiam escolas por
alcançar metas de desempenho e as que intervêm na formação dos diretores.
Escolas (mais do que diretores individualmente) podem ser premiadas por
alcançar metas de desempenho, cujo cumprimento seria avaliado por comissões
independentes.” (p. 16); desconsidera o processo de formação inicial do
profissional da educação, centrando na habilitação específica para diretor –
“Parte do acerto com os estados, que desemboque na construção de diretrizes de
uma carreira nacional de professor, deve ser o de escolher os diretores entre
os habilitados por estes centros, seja qual for o método de escolha.” (p.17);
desconsidera a Universidade como lócus da formação continuada dos docentes: “A
inauguração de Centros de Formação de Diretores deve ser seguida pelo
estabelecimento de Centros de Qualificação Avançada para professores.” (p. 17)
e)
enfatizamos a defesa de concepção ampla de educação, currículo e avaliação
educacional emancipatória e diagnóstica que ratifique a unidade nacional na
diversidade, conjugando igualdade e diferença e superando o modelo
homogeneizador e prescritivo e, desse modo, contribuindo para a melhoria da
qualidade dos processos educativos e formativos, em contraposição à concepção
de currículo restritiva presente em todo o documento em debate.
f)
reiteramos, ainda, que a coordenação das políticas educacionais, exercida pela
União, em articulação com os demais entes federados e sistemas de ensino,
destaca-se no fortalecimento dos Fóruns Nacional, estaduais, distrital e
municipais de educação e o papel das respectivas Conferências de Educação, já
se constituem como espaços de vanguarda, não apenas pedagógica, mas política e
técnica da educação nacional. Nessa direção, ressaltamos as concepções e
deliberações da Conae 2014 como base para a efetivação do Plano Nacional de
Educação e nos contrapomos às proposições pontuais que, propostas sem a devida
articulação e organicidade, fragmentam o debate e efetivação de políticas
educacionais requeridas para a educação nacional.
Por
fim, o FNE entende serem essas as avaliações preliminares do documento em
debate, reiterando que o PNE e o Documento Final da Conae/2014 são as
referências fundamentais para a Pátria Educadora, e coloca-se à disposição para
aprofundamento das discussões, cumprindo com sua função precípua, a partir da
Lei 13005/2014 nos Artigos 5º e 6º.
Assinam
a presente nota os Fóruns Permanentes de Educação abaixo relacionados:
Fórum Nacional de Educação – Fórum Distrital de
Educação – Fórum Estadual de Educação do AC – Fórum Estadual de Educação do AM
– Fórum Estadual de Educação do BA – Fórum Estadual de Educação do CE – Fórum
Estadual de Educação do ES – Fórum Estadual de Educação do GO – Fórum Estadual
de Educação do MA – Fórum Estadual de Educação do MG – Fórum Estadual de
Educação do MS – Fórum Estadual de Educação do MT – Fórum Estadual de Educação
do PB – Fórum Estadual de Educação do PE – Fórum Estadual de Educação do RN –
Fórum Estadual de Educação do RS – Fórum Estadual de Educação do SC – Fórum Estadual
de Educação do SE – Fórum Estadual de Educação do SP – Fórum Estadual de
Educação do TO